Sempre que alguém nos anuncia que está a escrever a sua própria autobiografia, o assunto principal, podemos adivinhar com segurança, será o de todas as autobiografias: o autor da autobiografia. É de longe o assunto mais interessante para os autores; e é por isso frequente quererem erguer a esse interesse monumentos mais duráveis que o bronze, onde o facto possa ser lembrado a outras pessoas para sempre, e por extenso. Não será de espantar. Quem desculparia que não quiséssemos fazer justiça perpétua àquilo que, entre tudo, nos interessa mais, e que imaginamos com largueza que não poderá deixar de interessar a todos? Existe nas autobiografias um casamento duradoiro entre interesse e instrução. A autobiografia é uma forma de serviço público.

Por estes dias os autores das suas próprias autobiografias, não obstante continuarem a preferir o bronze, mostram-se, ao contrário dos seus antepassados, relutantes em produzir obras longas; preferem exprimir-se mediante opiniões isoladas, e cultivar as formas breves (séries de vinte palavras, excepcionalmente fotografias do mesmo gato). A prolixidade ofende a modéstia característica das sociedades contemporâneas. Falar daquilo que mais nos interessa requer conta, peso e medida; e aconselha a que por assim dizer não se dê demasiadas asas ao assunto principal. Além disso, as autobiografias longas têm defeitos bem conhecidos: induzem ao ócio, e levam os leitores, nos seus tempos de distracção, a pensar em coisas que nem sempre vêm ao caso.

Como de costume a tecnologia acorreu em auxílio da ciência, e tornou viável a produção de um novo tipo de bronze, que dura em condições perfeitas não mais de quinze minutos. Permite como o bronze antigo tudo o que é necessário ao serviço público: o estilo terso, o tom da atenção a si próprio, e o gosto jaculatório. Mas, ao contrário das inscrições clássicas (e.g. “Fui eu quem roubou as peras,” “Esteve aqui o Noronha,” “Cumpriu-se!”), um processo acelerado de oxidação, resultado das propriedades desse novo bronze, faz com que um quarto de hora mais tarde já ninguém consiga ler nada do que foi nele gravado.

O bronze deste tipo mais recente presta favores à espécie: por um lado, deixa cada pessoa exprimir em público o interesse que tem por si própria, no tom e no estilo necessário para fazer justiça ao assunto; dar a terceiros o benefício das suas opiniões; e assim desincumbir-se dos seus deveres genéricos para com o público. Por outro lado, a oxidação expedita deste novo bronze dispensa o público de ser constantemente lembrado do muito que já aprendeu com os autores das autobiografias: o que se aprendeu, afinal de contas, está aprendido. A tecnologia conseguiu resolver um problema que os clássicos nunca tinham solucionado de modo satisfatório: permite a qualquer pessoa a possibilidade de escrever para toda a eternidade; e garante que um quarto de hora mais tarde já ninguém se irá lembrar de nada.

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