1. O PSD vai votar favoravelmente as alterações da lei da paridade propostas pelo PS. Aleluia. Curiosamente votarão os mesmos deputados que há pouco tempo, sem achaques de consciência ou feroz contestação, se abstiveram na legislação que impunha quotas nos conselhos de administração das empresas públicas.

Numa aparente rapidíssima recuperação cognitiva, em poucos meses informaram-se de estatísticas, leram papers científicos que constatam o preconceito na avaliação do trabalho das mulheres, conheceram os incontáveis textos sobre casos concretos de discriminação. Estou certa que muitos se terão sentido como São Paulo na estrada de Damasco, estavam cegos e viram a luz a aí por diante.

Terão, com sorte, finalmente entendido a necessidade de representação política e administrativa adequada de metade da população naqueles órgãos que decidem e implementam as políticas que lhe influenciam a vida. Os deputados já conheciam a boa e velha expressão ‘no taxation without representation, mas no fundo achavam que as mulheres não eram bem cidadãs, serviam para pagar impostos mas melhor deixar os entediantes assuntos da governação para os homens. Quiçá no PSD já se tenham curado do vírus que os impelia a referir a conversa ignorante e malsã sobre ‘o mérito’.

Um homem pode ser escolhido (e muitos são) pela razão mais indigesta – graxa indecorosa, pagamento de favores, afinidade regional, amizade pessoal –  que não sofre tremores de alma por isso. Ninguém se lembrou de perguntar a Feliciano Barreiras Duarte se considerava indigno ser escolhido para deputado e secretário de estado, tendo em conta as fragilidades do CV. Só as mulheres é que têm de possuir quatros doutoramentos antes de se considerarem aptas. Se só tiverem dois doutoramentos e um mestrado (escritos percetivelmente), serão sempre sem mérito nenhum, escolhidas apenas por serem mulheres, somente para preencher quotas – e quem sobrevive psicologicamente a tal provação? Ninguém, asseveram-nos os senhores (repletos de mérito, claro) que não querem perder os lugares para o mulherio.

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Bom, deixemos de lado os deputados do PSD. E reconheçamos que Rui Rio esteve, aqui, lindamente. Bem como, de resto, Assunção Cristas. Vejamos quem do CDS (que tem liberdade de voto nesta matéria) vota favoravelmente. Já houve centristas declarando-se frontalmente contra esta medida. Como de costume, tudo o que envolve mulheres provoca reações desproporcionais, e a ala conservadora do CDS não tem a participação feminina como prioridade. Cabe às eleitoras de direita avaliar quem está contra elas e votar de acordo nas eleições seguintes.

2. João Botelho usou as histórias do livro O Corsário dos Sete Mares, de Deana Barroqueiro, para o filme Peregrinação. Não houve qualquer assunção do facto, nem compensação à criadora das histórias (monetária ou na forma de publicidade ao livro), nada para além de um vago agradecimento. Questionado, o realizador colocou-se na posição magnânima que assume ‘a inspiração’ e que até, vejam bem a generosidade, permite que a autora faça referência ao filme nas reedições do livro.

Bom, podemos ver este caso como um simples caso de apropriação das ideias de outra pessoa. Há muitos. Mas não deixo de reconhecer um modus operandi muito comum no mundo profissional. O homem que pega nos contributos de uma mulher e os apresenta como seus. Não conheço nenhuma mulher que não tenha vivido evento similar: apresenta uma proposta ou ideia, é ignorada por toda a gente (por vezes é mesmo atacada), um homem que a conhece pega na dita proposta ou ideia, apresenta-a como sua e todos os que anteriormente a ignoraram (ou atacaram) aplaudem-na como genial.

Por isso não presumo só um descaramento de um realizador. Todos os casos individuais podem sempre ser acasos, mas a verdade é que há tendência maior para considerar que o trabalho das mulheres é para ser usurpado por outros mais acima no escadote. Os contributos femininos, mesmo quando muito relevantes, finge-se que não existiram e reconhecem-se só os de autoria masculina. Os exemplos são demasiados.

Refiro um. Damien Hirst, celebrado artista britânico da atualidade (é um artista conceptual, categoria que por acaso me irrita), tem uma nova exposição com trabalhos decalcados de uma artista aborígene australiana. Hirst diz que não, apesar da técnica muito semelhante: inspirou-se afinal em Pierre Bonnard. É certo que os temas que artistas e contadores de histórias repetem-se. A imaginação não é infinita. Pode-se contar a mesma história de maneiras diferentes. Os artistas inspiram-se uns nos outros. Hirst também não se inspira (enfim) só em mulheres. Tudo verdade. Mas quando Hirst apresenta imagens caleidoscópicas feitas com borboletas mortas anos depois da artista Lori Precious apresentar imagens caleidoscópicas feitas com borboletas mortas, estranhamos, não?

O resultado? A compensação financeira vai para os usurpadores de ideias.

3. Os casos acima, e tantos outros, desqualificam totalmente o discurso do ‘mérito’ que se usa para argumentar contra a necessidade de quotas em tudo o que é público (ou para negar as causas do wage gap). Como se vê, há quem tenha como maior mérito ser homem e, logo, ter-lhe oferecida, por questões culturais, uma maior complacência do mercado e dos partidos políticos. Já o ficcional Sir Humphrey Appleby dizia ‘devemos escolher o melhor homem para o lugar, independentemente do sexo’.

Por isto mesmo as alterações à lei da paridade são necessárias. Para contrariar estados que nada têm a ver com mérito e para normalizar a visibilidade feminina.

Termino com uma palavra para os homens decentes e suficientemente seguros de si próprios que não fogem de encarar a realidade, diagnosticar-lhe entorses e que são aliados nesta boa evolução. São em número crescente e devem ser celebrados. Quanto aos amofinados com a emancipação feminina, resta-nos dizer-lhes, como sempre nos atiraram quando as quotas masculinas eram maiores: se forem bons e tiverem mérito, certamente chegam lá. Afinal têm uma quota de 60%.