O Luís Pedro Nunes perguntava-se há uns meses, no Expresso: Terei sida? E respondia logo: “Não. Bastou fazer o teste e esperar meia hora pela resposta.” O embaraço de ir ao médico pedir a requisição para o teste, depois ir ao laboratório, ficar a roer as unhas à espera da resposta, tudo acabado. Agora as farmácias fazem o teste. É a felicidade? Não é.

Não porque os testes sejam maus. Bem pelo contrário, são muito bons. Nos últimos trinta anos investiu-se imenso dinheiro em torná-los bons porque são essenciais para a segurança das transfusões de sangue, dos transplantes de órgãos e da gravidez. Mas, numa pequena percentagem de casos, o resultado do teste está errado e esse resultado errado é, quase sempre, um resultado falsamente positivo. O que está bem porque, nas situações que referimos, o que interessa é detectar todos os casos positivos – mesmo que tal signifique que haja alguns negativos a darem resultado positivo. Um resultado falsamente negativo pode resultar na contaminação irremediável de outras pessoas. Um resultado falsamente positivo pode ser esclarecido com testes adicionais. Do ponto de vista do interesse geral, esta é a estratégia certa.

De acordo com o relatório da OMS de 2015, “HIV Assays: Laboratory performance and other operational characteristics of rapid diagnostic tests”, a páginas 23-25, a especificidade dos testes rápidos (isto é, o número de resultados negativos obtidos num grupo de amostras negativas) é, em média, 99,5%. O que quer dizer que, em média, um em cada duzentos testes realizados em pessoas sem infecção dará um resultado falsamente positivo.

Infelizmente, isto significa que, se o resultado do teste feito na farmácia for negativo e o leitor não for dos que nunca sabem em que cama acordam, tudo bem. Mas também significa que há uma possibilidade relativamente elevada de que o leitor, mesmo sendo negativo, tenha um teste positivo. Mais: significa que a esmagadora maioria dos testes positivos serão falsos.

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Perguntar-se-á o leitor: mas, se só um em cada duzentos testes positivos é que é falso, porque é que a maioria dos testes positivos vai ser falsa? Porque a maioria das pessoas não está infectada.

A razão do aparente paradoxo chama-se “valor preditivo” e, no que aos rastreios diz respeito, define-se como a probabilidade de o resultado de um teste ser verdadeiro. Digamos que é a probabilidade de uma certa coisa ser o que parece.

O conceito não é intuitivo mas faz, na verdade, parte da nossa experiência do dia-a-dia. Imagine o leitor que acorda uma bela manhã com uma dor no peito e que tem 55 anos, é fumador, não perde uma feijoada e passa os dias sentado. Em que é que pensa? “Enfarte.” E tem razão, é uma boa hipótese. Se, ao contrário, tiver 20 anos, for ao ginásio três vezes por semana e só beber sumos naturais – então talvez pense, sei lá, em moderar os exercícios com halteres. E, mais uma vez, estará a pensar bem. Porque, para usar terminologia mais técnica, um resultado positivo numa população de baixa prevalência tem menos probabilidades de ser verdadeiro do que um resultado positivo numa população de prevalência elevada.

A maneira mais simples de explicar isto é com um exemplo. Imaginemos dois grupos de mil pessoas: um grupo (população 1) de tóxico-dependentes em que 10% estão infectados e um grupo (população 2) recrutado num centro comercial de forma aleatória, em que só uma pessoa em cada mil (0,1%) está infectada. E imaginemos que aplicamos aos dois grupos um teste com uma especificidade de 99% (isto é, só um em cada cem resultados positivos será falso).

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Valor preditivo positivo (VPP) de um mesmo teste aplicado a duas populações, uma com baixa prevalência e outra com prevalência elevada.

Em termos absolutos, o número de resultados falsamente positivos é o mesmo nos dois grupos: dez. Mas, no grupo de tóxico-dependentes, haverá 100 positivos verdadeiros, enquanto no grupo arrebanhado no centro comercial só haverá um. Isso significa que, quando tivermos à nossa frente um resultado positivo no teste, se a pessoa pertencer ao grupo 1 esse resultado será verdadeiro nove vezes em cada dez; mas, se a pessoa pertencer ao grupo 2, o resultado será falso nove vezes em cada dez. Ora os frequentadores das farmácias têm certamente mais em comum com os frequentadores dos centros comerciais do que com um grupo de tóxico-dependentes. Pelo menos em matéria de prevalência de infecções como a SIDA.

Então que fazer com um resultado positivo? Num rastreio da diabetes ou do “colesterol”, com a eventual excepção de algumas pessoas mais excitáveis, ninguém terá crises de ansiedade ou pensará em suicídio por ter a glicémia ou o colesterol a 250. Mas imagine-se o leitor a fazer o teste do VIH na farmácia e a levar com um resultado positivo. Imagine aquele seu amigo hipocondríaco, ou histérico, a levar com um resultado positivo. Imagine que faz o teste com a sua cara-metade. As possibilidades de desastre são infindáveis.

Portanto: os rastreios do VIH de venda livre nas farmácias são uma boa ideia? Sim, para as farmácias.