Os mandarins da opinião paga tendem a ter pelas redes sociais um ódio frenético. Pacheco Pereira, por exemplo, casca nelas com furor sempre que a ocasião é, ou ele a faz, oportuna. Acha que são perigosas, veiculam ideias primárias, põem no mesmo plano a opinião do condutor de empilhadores zangado com o mundo, que acredita que a terra é plana e que há várias conspirações mundiais destinadas a engenheirar as sociedades, e a do académico com obra reconhecida pelos pares.

Depois, as redes são usadas por grupos terroristas, extremistas de vária pinta, vigaristas de todo o tipo, predadores sexuais, etc. E todos os dias pessoas e grupos fabricam notícias falsas, ilustradas com fotografias ou vídeos manipulados, afirmações de responsáveis descontextualizadas, e toda uma panóplia de aldrabices sortidas, que são instantaneamente reproduzidas às centenas de milhar por tribos ansiosas pela confirmação das suas crenças.

Que há conspirações é um facto. Mas isso não impediu o nascimento de organizações de fact check, utilíssimas mas que já deram abundantes provas de, quando as notícias põem em causa poderes públicos, se limitarem a papaguear a versão oficial dos factos – consequência do trabalho sentado ao computador, e do viés socialista que afecta a classe jornalística, ao menos entre nós, e que leva os autores (os fact check têm autores de carne e osso) a tomarem-se por pastores da grei, com a obrigação de divulgarem a mensagem certa, se a notícia a verificar for excessivamente desalinhada.

Com fact checks podemos nós bem – acreditamos ou não, ninguém nos obriga. E, o Pacheco Pereira que tenha paciência, com básicos e chanfrados a expectorar asneiras e a vomitar ódio em português das novas oportunidades, também. Até porque no embrulho podem vir, e vêm, coisas boas.

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O problema é que Pacheco, e alguns outros Pachecos gurus da comunidade, acham que as escolhas as devem fazer eles, e não nós, a massa anónima dos consumidores de treta. E acham isso, oficialmente, por não quererem a difusão de nódoas ideológicas nas nossas sociedades, mas realmente (processo de intenção meu) por não quererem concorrência: nas redes aparece quem, de graça, tem tanta ou mais audiência do que eles, a propagar ideias que abominam e que querem esmagar com um interdito.

É com este pano de fundo da alegada necessidade de controlar as redes que, pacificamente, assistimos ao espectáculo de os seus donos, à boleia do combate à violência, ao ódio, ao racismo, à pornografia e mais um par de botas, terem desenhado algoritmos que permitem calar – sem processo, sem recurso e, quase sempre, sem publicidade, quem quer que seja que tenha um discurso que ofenda as suas convicções, ou as que acham mais convenientes para não afugentar anunciantes.  E esta prática já levou inclusive que um homúnculo se tenha permitido impunemente fechar a matraca ao presidente dos EUA. Deu nas vistas, claro, como não dão os milhares ou milhões de mensagens que todos os dias são canceladas por coisas tão banais como a exibição de um par de mamas ou, pior, um sexo cabeludo (como o de Courbet, na Criação do Mundo, que o algoritmo púdico de Zuckerberg censurou) mas também apologias ou refutações do nazismo, racismo, alterações climáticas, igualdade de género, perigosidade da Covid e uma longa lista de delitos, dependendo das queixas de ofendidos.

Há aqui uma confusão: as redes são de propriedade privada mas o seu meio é um bem público, a liberdade de opinião. Permitir-se que um idiota como Zuckerberg ou qualquer outro magnata decida o que pode ou não dizer-se no Facebook não é diferente de o dono de um café proibir a entrada de pretos ou hindus: num caso ofende-se a liberdade de opinião e no outro a igualdade dos cidadãos perante a lei, e portanto no acesso a espaços públicos.

Eu gosto das redes, sobretudo do Facebook, e na minha bolha aprendo com frequência alguma coisa, divirto-me com os disparates, espanto-me com a ignorância, aborreço-me com gente pomposa e irrito-me com cretinos que querem çalvar Portugal a golpes de indignações avulsas, maiúsculas, pontos de exclamação e confessada admiração pelas eructações do dr. Ventura.

Tenho lidado com muita gente, e hesitado pouco na hora de saltar da rede para a rua e a conhecer pessoalmente. E, ó espanto, essa gente não é diferente do que imaginava pelos seus avatares. Posso dizer que hoje conto como amigos pessoais, e companheiros de jantaradas e tertúlias, que conheci via Facebook e blogosfera. Que, sendo muitos, ainda são menos do que aqueles que nunca vi por estarem longe e termos vidas desencontradas. De modo que – vai-te lixar Pacheco – as redes têm um saldo largamente positivo, para mim e milhões.

Pois bem: Tenho um amigo facebookiano que prezo muito por pensar (algumas vezes mal, na minha opinião, que naturalmente respeito) com originalidade sobre os mais diversos assuntos. De sólida formação científica na área da Física (que julga, em conjunto com outras ciências duras, o alfa e o ómega da cultura e da lucidez), acrescenta-lhe uma grande simplicidade, que o leva a discutir com todo o cão e gato. E numa discussão sobre um incidente num jogo de futebol, em que um negro se sentiu ofendido pela atitude de um árbitro (peço desculpa por não me lembrar dos detalhes da historieta, e não ter paciência para a procurar), cometeu o erro de argumentar com um pateta justiceiro, um tipo de personalidade muito frequente nas redes. Zás: “A tua publicação desrespeitou os nossos Padrões da Comunidade relativos a discurso de incentivo ao ódio”, toma lá 30 dias de suspensão.

A liberdade de expressão nunca teve muitos amigos, por ser um perigo para os poderes – todos os poderes – e porque quase toda a gente a defende desde que não sirva para ofender aquilo em que se acredita – a fé, a democracia, a pátria e mais umas grandiloquências, que variam consoante as pessoas. Pelo menos era assim; agora é assado porque a lista do que não se pode dizer vem aumentando à medida que se lhe acrescentam novos valores, entre eles o discurso de ódio, a igualdade de género e das civilizações, bem como outras frescuras.

Fizeram-me falta os 30 dias do meu amigo. Não é esquerdista, não é preto nem cigano, não é pobre nem explorado, não é situacionista nem convencional. Azar dele: os tempos vão para quem pensa como deve ser; para os outros há suspensões.