Antes e após o lançamento de uma iniciativa popular de referendo à eutanásia (da qual desde já declaro ser mandatário), e com a criação espontânea de um movimento social e político de grande adesão a recolher assinaturas por todo o país nas últimas semanas, muitos argumentos contrários ao referendo se têm defendido de ambos os lados da barricada. Contudo, na maré de argumentos que se esgrimiram há erros e confusões de conceitos que importa esclarecer, uma vez que impedem um debate sereno e realista que o País precisa e reclama.

Nesta hora tão premente em que uma maioria de deputados aprovou vários projectos de lei sobre esta matéria, rapidamente e em força, contra a posição de inúmeras instituições (entre outras, Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, Ordem dos Psicólogos, Ordem dos Médicos), à revelia de um mandato popular que não apontou nesse sentido e tendo em conta as enormes alterações estruturais, sociais e éticas que a legalização e promoção da eutanásia pelo Estado acarretam, é chegado o tempo de deixar a maré acalmar e de se fazer um juízo sobre a necessidade do referendo, o grande imperativo da hora presente.

  1. A vida humana não se referenda”. Este é o principal argumento a que têm aderido pessoas com as mais diferentes posições sobre a eutanásia. Contudo, a verdade é que não se pretende referendar a vida de ninguém, trata-se, outrossim, de referendar uma significativa alteração ao nosso Código Penal.
    É evidente que o Código Penal é um reflexo da moral e da ética de uma sociedade, pois trata-se da mais exigente intervenção do Direito na vida das pessoas, que (em última instância) pode levar até à privação da sua liberdade, constituindo assim um instrumento que o Direito utiliza para defender os bens jurídicos mais fundamentais da sociedade.
    Ora, num tema tão sensível como é a morte e tendo presente a maneira como a sociedade o entende desde há largos séculos, é natural que o povo português não queira que o Direito Penal deixe de refletir de modo abrupto, inesperado e extremamente desinformado, a defesa de valores até hoje considerados fundamentais.
    Contudo, apesar do Direito Penal dever defender o bem jurídico que é a vida, a lei penal não se confunde, nem se identifica com a vida, tal como a obrigação de uso de um cinto ou de um sistema de airbag não é a mesma coisa que a integridade física de um condutor. O que se pretende com o referendo, ora proposto, é que o povo português possa discutir de modo informado e decidir se devemos manter uma defesa rigorosa (ou seja, através da lei penal em vigor) de determinados valores éticos e morais, cujo expoente é o valor da vida. Em suma, não se pretende referendar a vida de ninguém, mas sim referendar uma alteração legislativa. Do mesmo modo que se referendássemos a obrigatoriedade do uso do cinto ou da instalação do airbag, não estaríamos a referendar a vida ou a segurança das pessoas, mas sim os meios para defender esses bens.
  2. Os direitos fundamentais não se referendam”. Este referendo não tem como objecto a consagração de um direito fundamental, mas, como se disse acima, uma alteração à lei penal. Mas, ainda que assim não se entendesse, sempre se deve esclarecer que a ideia do “direito a uma morte digna” não constitui, de modo algum, um direito. Isto porque, juridicamente, a morte é insusceptível de ser objecto de um direito. Os direitos debruçam-se necessariamente sobre bens, razão pela qual não é possível haver um direito à morte, à escravatura, à doença ou à fome (ainda que individualmente os quiséssemos). Em bom rigor a morte não é um bem, aliás, constitui a anulação de todos os bens terrenos. Por fim, caso fosse aprovada a eutanásia, esta seguiria um caminho semelhante ao do aborto, isto é, não se consagraria qualquer “direito à eutanásia” ou “direito à morte digna”, mas deixar-se-ia apenas de penalizar a sua realização em determinadas circunstâncias.
  3. A Assembleia da República tem legitimidade para legislar sobre a eutanásia”. A AR tem, de facto, legitimidade para legislar sobre diversas matérias, inclusivamente sobre o Direito Penal. Mas cumpre deixar claro que a legitimidade dos Portugueses se pronunciarem, em sede de referendo, sobre a despenalização da eutanásia em nada se opõe ou diminui à legitimidade da AR para se pronunciar sobre o tema. Pelo contrário, o referendo poderá coexistir com a legitimidade parlamentar e, até, reforçá-la, no caso do Parlamento ouvir a posição da sociedade sobre o assunto e não se ficar pelas duas centenas de deputados que decidiram entre o plenário e os corredores de São Bento legalizar a eutanásia.
    Adicionalmente, do ponto de vista da legitimidade política (e não estritamente legal), a legitimidade da AR para se pronunciar sobre este tema é puro ilusionismo. Não falo de partidos como o BE ou o PAN que deixaram frontalmente claro nos seus programas eleitorais a sua posição e ao que vinham. Falo do PS, que não tinha qualquer referência à eutanásia no seu programa eleitoral mas decidiu avançar com um projecto de lei sobre esta matéria.
    A verdade é que a política deve ser transparente e as instituições democráticas vivem, como pão para a boca, dessa transparência por parte dos políticos. Os partidos são votados em função dos programas com que se apresentam e não em função da subjectividade da consciência dos deputados, que pode mudar consoante as mais diversas circunstâncias e os diferentes estados de alma por que estejam a passar. Se a questão do voto dos deputados fosse apenas de consciência pessoal (como se tem afirmado recorrentemente), então nada impediria que os Portugueses se pronunciassem em sede de referendo, de acordo com a consciência pessoal de cada um. Afinal, em termos de consciência somos todos iguais. Coisa diferente seria afirmar que deve funcionar a democracia representativa, a qual ocorre num contexto em que os deputados foram mandatados pelos seus eleitores para defenderem certas linhas políticas, o que manifestamente não sucede no presente caso com os deputados do PS e do PSD.
  4. A eutanásia é uma opção pessoal, que não deve ficar dependente da vontade de uma maioria”. A questão da eutanásia, ao contrário do que possa parecer, não é só uma questão individual, mas também profundamente social e por isso merece uma enorme reflexão por parte da sociedade portuguesa. O que está em causa na legalização da eutanásia é permitir que se peça ao Estado Português (ou seja, todos nós), desde logo no sistema nacional de saúde, que se mate alguém. O eutanasiado não se mata sozinho, mas sim através da avaliação (seja lá em que termos for) e actuação de outros, isto é, de profissionais de saúde. Mas não são só os médicos, psicólogos e enfermeiros que se vêm envolvidos na morte de outra pessoa, somos todos nós que nos envolvemos, sabemos e permitimos que isto aconteça em Portugal. País este no qual mais de 70% da população não tem acesso a cuidados paliativos e o Estado, em vez de dar condições para cuidar, acompanhar e tratar os doentes na última fase da nossa vida, decide, com toda a prioridade (e sem qualquer escrutínio popular) oferecer a morte.
  5. A hipocrisia de quem se opõe à eutanásia e só agora defende o referendo”. Antes de mais, um esclarecimento prévio: evidentemente o referendo contempla duas respostas, duas posições, razão pela qual é um referendo de todos os Portugueses e para todos os Portugueses, não para quem está contra ou para quem está a favor.
    Dito isto, em relação àqueles que se opõem à legalização da eutanásia, estes pretendem a manutenção da lei penal em vigor, razão pela qual, é não só lógico como totalmente legítimo que, tendo-se verificado na conjuntura parlamentar de Maio de 2018 não haver quorum suficiente para alterar a lei, não tivessem qualquer iniciativa para realizar um referendo sobre a sua alteração. Agora, na presente conjuntura parlamentar, logicamente incumbe a quem quer alterar a lei penal deixar claro porque é que o pretende fazer, informando e ouvindo os Portugueses sobre essa mudança que desejam. Não é tempo para fazerem acusações aos outros que, coerente e legitimamente, tudo fizeram para defender a manutenção da lei que consideram boa e justa. É tempo de dizerem com clareza ao que vêm e por quê, sem receio de ouvir os Portugueses.

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