David Cameron acabou as negociações em Bruxelas, declarou a UE “reformada” e marcou o referendo sobre a permanência do Reino Unido na UE. Imediatamente, o movimento pela saída britânica adquiriu o campeão que lhe faltava: Boris Johnson, o mayor de Londres, mas sobretudo o rival que os conservadores descontentes sempre desejaram levantar contra Cameron e sobretudo contra o seu provável herdeiro, George Osborne. O primeiro aspecto do debate europeu no Reino Unido é, assim, o de uma disputa da liderança no Partido Conservador. Por esse lado, tudo se vai resumir a saber em quem votaria Margaret Thatcher. O pior é que mesmo que Cameron ganhe o referendo, qualquer sucessão a que Boris Johnson concorra será vista como uma reabertura do debate europeu.

Cameron colocou a questão nos devidos termos: o Reino Unido corre mais riscos políticos e económicos fora da UE, do que dentro de uma UE “reformada”. Isso é, aliás, verdade para todos os outros Estados. Os países europeus desenvolveram um modo de vida que não é compatível com autarcias soberanistas. Desde o século XIX que a prosperidade na Europa foi tanto maior, quanto maior foi a livre circulação de pessoas, capitais e mercadorias. O problema que a UE recentemente inventou foi o de fazer depender a livre circulação de uma espécie de Estado europeu. A batalha de Cameron é para separar uma coisa e outra. Costuma dizer-se: a Europa tem de ser mais do que um grande mercado. A questão britânica é: a Europa tem de ser mais do que um grande Estado. Uma vitória de Cameron demonstrará essa possibilidade.

Esta é uma discussão que só poderia decorrer no Reino Unido. Porque esse Estado insular é, na Europa, um dos poucos em que é possível imaginar a liberdade e a prosperidade sem a integração europeia. É a quinta maior economia do mundo, com um dos maiores centros financeiros do planeta. É, acima de tudo, um dos Estados europeus onde a vida livre fundada no império da lei, na democracia representativa e na economia de mercado não resultou de revoluções, guerras civis ou pressões geopolíticas nos últimos duzentos anos, mas de uma história antiga, que fez da liberdade um património nacional. No seu passado remoto, os britânicos têm a Magna Carta e não a Inquisição; no passado recente, Churchill e não os coronéis gregos. Por isso, é um país onde, ao contrário de Portugal ou da Grécia, a saída da UE não significa a entrada quase garantida no clube latino-americano do autoritarismo e da bancarrota. Havendo alternativas, há espaço para uma genuína discussão.

O que não quer dizer que venha a haver essa discussão. No Reino Unido, como em todo o Norte da Europa, a UE resume-se hoje a dois tópicos: o custo dos resgates gregos e a vaga descontrolada de imigração. A participação na UE, em princípio, talvez não incomode demasiados britânicos; mas se significar as portas abertas à imigração e o pagamento das contas da Grécia, já incomodará muitos mais. É esse o trunfo que faz sorrir Nigel Farage, o líder do UKIP. O debate europeu, neste momento, pode dar ao populismo nacionalista, a que o sistema eleitoral britânico tem resistido fora da Escócia, a força necessária para dividir e desfigurar o Partido Conservador, tal como o populismo radical já fez ao Partido Trabalhista. A transmutação do Partido Conservador e Unionista numa espécie de Partido Nacionalista Inglês seria uma má notícia para o Reino Unido, mas também para o resto da Europa, onde não deixaria de inspirar movimentações congéneres, tal como aconteceu com a substituição do PASOK pelo Syriza na Grécia. Convém, por isso, estar atento ao noticiário britânico.

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