Com a distração geral do país o governo acaba de dar à luz um novo minotauro administrativo, com suposta cabeça de Estado e corpo de autarcas. Foi criado no mês passado por decreto-lei do governo, teve o beneplácito do Presidente da República, e a tentativa de o matar esta sexta-feira na Assembleia da República falhou. Na realidade todos os projetos apresentados para que cessasse a vigência desse decreto-lei (BE, CDS, PCP, PEV, IL) foram chumbados. Resta agora o debate na especialidade das propostas de alteração para o melhorar, ou piorar.

Não há, em toda a administração pública portuguesa semelhante minotauro, como duvido que haja em qualquer administração pública de qualquer país desenvolvido europeu. Parece-me caso único. Em Portugal estamos sempre a tempo de ser criativos!

Esse decreto-lei, que eufemisticamente tem como sumário que “altera a orgânica das CCDRs”, na realidade não é sobre a sua orgânica mas apenas sobre o método de seleção da sua direção. Em resumo, e visto as CCDRs serem organismos desconcentrados da administração central não havia volta a dar: a nomeação do Presidente e dos Vice-Presidentes é feita por resolução do conselho de ministros (RCM), a posse é feita perante o primeiro ministro e a cessação de mandato, devidamente fundamentada, pode também ser feita pelo governo (RCM). Até parece, como seria expectável, que o governo mantém a tutela, a orientação política sobre as CCDRs, dado serem organismos desconcentrados da administração central. De facto assim não é na prática.

Senão vejamos, o Presidente da CCDR é “indicado” na sequência de um processo eleitoral a partir de um colégio eleitoral formado por presidentes da Câmara e vereadores (mesmo sem pelouro), presidentes das Assembleias Municipais e deputados municipais (incluindo presidentes de Juntas de Freguesia). O primeiro vice-presidente (não indicado como tal, mas é o que é referido primeiro no DL) é indicado pelos presidentes de Câmara da área territorial da CCDR, e o segundo vice é indicado pelo governo após “consulta” aos dois primeiros. Não é difícil perceber quem irá mandar na CCDR. O presidente da CCDR poderá ser o presidente da assembleia municipal do partido que tiver a maioria dos deputados municipais da região, que são em maior número que os vereadores desse partido. Assim, obtém o estatuto e a remuneração de sub-secretário de Estado (outra inovação do DL). O primeiro vice-presidente esse será provavelmente o presidente de Câmara do partido com mais câmaras, pois ele é eleito entre pares.

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Claro que ambos, em teoria, podem ser personalidades externas, mas isso só aconteceria se não houver um acordo mínimo entre PS e PSD. Chega-se até ao paradoxo de o governo, que é quem tem poder de nomear toda a direção da CCDR, ter de eventualmente se confrontar com uma opinião  do presidentes e primeiros vice-presidentes já eleitos (perdão, a ser nomeados) contrária ao nome indicado pelo governo.

As CCDRs são organismos apetecíveis pois entre muitas outras coisas o presidente da CCDR é, por inerência, o gestor do programa operacional regional (POR), financiado por fundos europeus. Faria todo o sentido que os POR e muitas políticas regionais (na cultura, no planeamento, no desenvolvimento regional) fossem geridas por líderes regionais democraticamente eleitos pelos cidadãos de cada região, mas em sufrágio direto e universal dos cidadãos de cada região.

A isto se chamaria regionalização que, prevista na Constituição desde 1976, foi obstaculizada e armadilhada pelo então líder do PSD Marcelo Rebelo de Sousa, há mais de vinte anos. Não seria difícil ir à fonte do problema – uma revisão constitucional mais equilibrada em relação a esta matéria – dado que existe uma larguíssima maioria parlamentar nesse sentido (PS, PSD, PCP e BE). Essa revisão poderia instituir apenas uma pergunta no referendo (e não como agora seis, uma pergunta abstrata sobre a instituição das regiões e mais cinco para cada instituição em concreto de cada uma das cinco regiões administrativas). E deveria instituir a arquitectura financeira das regiões de forma a garantir que da regionalização não sairá maior despesa pública (*). Este o caminho que deveria ser seguido. Mas como não tem havido coragem para o trilhar criou-se este minotauro, que nada tem a ver com a regionalização, como diz e bem PCP e BE, pois percebem que esta solução bloco central de municipalização da regionalização e de captura dos líderes regionais pelos autarcas os asfixia. Percebem que líderes regionais não são líderes locais, como percebem que sufrágio universal é muito diferente de colégio eleitoral.

Todo este processo tem subjacente a narrativa da “legitimidade democrática” dos novos líderes por parte de alguns responsáveis governamentais, aparentemente alheados do minotauro que acaba de ser construído. A legitimidade democrática que têm os organismos desconcentrados da administração central, é a que lhe advém, indiretamente da legitimidade democrática do governo, nunca indiretamente de um colégio de representantes das autarquias locais e é isso que foi agora, originalmente, feito. Mais, se não houver alterações na especialidade, e se se mantiverem os timings previstos de eleição/nomeação dos presidentes e vice-presidente das CCDRs ainda este ano PS e PSD devem uma explicação ao país. Esqueçamos por agora o problema do minotauro perdido no seu labirinto. Qual a legitimidade democrática de autarcas, que foram eleitos para determinadas funções, serem, a meio do mandato, investidos de novas funções eletivas de presidentes e vice-presidentes das CCDRs? No mínimo, para haver alguma decência e transparência democrática deveria esperar-se pelas autárquicas de 2021.

* A minha posição sobre a regionalização, não é a favor nem contra em abstrato. É a favor em concreto se, e só se, houver constitucionalização mínima do modelo financeiro para não permitir estratégias de procura e obtenção de rendas (rent seeking) a que infelizmente nos habituámos. Desenvolvi-a em 1998 no livro Regionalização, Finanças Locais e Desenvolvimento, e mantenho-a. O tema será revisitado em A democracia em Portugal: como evitar o seu declíneo, Almedina, Outubro 2020.