“Contra factos não há argumentos”
(Expressão popular que cada vez vemos mais invertida)

Ouvimos tudo por estes dias em que o calor aperta e os incêndios não dão tréguas. Não é exclusivo nosso. Espanha está a passar pelo mesmo, e acusaram-se os madeireiros, uma conspiração terrorista, e provado que inocentes, passou-se a apontar o dedo aos caçadores e a vingança contra a proteção legal aos lobos… Isto quando os grandes incêndios por estes dias, começaram com raios.

Por cá, a extrema-direita lá ressuscita o fantasma do fogo posto, a extrema-esquerda volta a gritar contra os eucaliptos – tanto um como outro, fatores que pesam menos de 20% para a problemática, pelo que, merecendo atenção, o pouco que vale falar deles como o principal problema inclui a agravante de desonerar o Estado de responsabilidades.

Há, todavia, um fator que, ao contrário dos outros já muito esmiuçados, pode iludir a maioria das pessoas, pouco atreita a pensar sobre assuntos mais complexos, mais ainda quando estes parecem lógicos. Falo das Alterações Climáticas e em como, frequentemente, as vemos associadas à problemática dos incêndios.

Vamos então desmanchar esta ideia feita:

Quanto mais velocidade mais acidentes. Certo? Os carros estão cada vez mais rápidos, correto? Logo, se mais velocidade é pior para a sinistralidade e se os carros estão mais rápidos, de certeza que há mais acidentes. Errado.

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O mesmo pensamento:

Como quanto mais meteorologia extrema, mais Incêndios, como o clima está mais quente e prevê-se que se torne mais extremo… Então se o verão está mais severo e se se prevê que continue a agravar, isso resulta em mais fogos e área ardida. Certo? Errado.

E que ambos estão errados é factual – há dados estatísticos de acidentes e há-os de incêndios, e o que ambos mostram é que os números nas últimas décadas têm caído.

Já vamos para a explicação, mas antes de mais, interessa aceitar os dados e os factos e pensar a partir daí. Mas essa aceitação é… difícil. Pelo contrário ouvimos argumentos atrás de argumentos. Contudo, argumente-se o que se quiser, seja sobre velocidade de carros seja sobre efeitos das alterações climáticas, factos são factos.

Então, qual a explicação possível?

Que muito mais coisas para além da velocidade, algumas bem mais relevantes, interferem com o resultado esperado (sejam inspeções, sensibilização, segurança dos veículos, sinalização e policiamento, etc., etc.). Que coisas como a quantidade de combustível, os usos do território, a orografia, a distância das forças de combate ou acessos ou meios, a gestão que se faz do fogo, o histórico de incêndios, os ventos dominantes, os nevoeiros, as trovoadas, etc., etc… Tornam essa uma questão menor.

Convencido? Continuemos:

Temos uma curva cheia de acidentes. Como uma serra com longo historial de Incêndios. E sim, é certo que os carros envolvidos andam mais rápido: uns dão 220 km/h, outros ainda mais. Tal como as temperaturas chegam a 46, 47, 48 °C. Em nada disto há dúvida.

Então a velocidade, que é uma certeza, tem que estar envolvida? Não tem. A curva tem lá um limite de 40 km/h e os acidentes registados dão-se a 70 ou 80 km/h. Ah mas os carros agora em vez de 160 dão até 220. Ok, mas todos já davam 70 ou 80 que é a velocidade dos acidentes… Andarem mais rápido é irrelevante. Cumprir o código, andar com cautela, sem distração ao volante, pôr umas lombas, uns sinais, um Polícia… Isso é que são coisas relevantes. O carro andar mais ou menos é indiferente para a questão, é verdadeiro, é factual, mas não é chamado a este assunto…

Nos incêndios é igual. O que interessa se estão 43 em vez de 39? Com o “barril de pólvora” que temos arde bem com 43 como arde com 39 como arde com 33… Aliás há muitos anos que ouvimos falar na “regra dos 30” (abaixo 30% de humidade, mais 30km/h de vento, mais de 30°C = condições terríveis). Ora todos os anos esses números acima de 30 são banais. Todos os anos podem existir condições terríveis…

Interessava sim se antes os carros só andassem a 40 km/h e agora a 220… Ou se sem Alterações Climáticas raramente passássemos dos 30 e agora passamos e vamos aos 47… Mas nem uma nem outra é verdade. Os efeitos das Alterações Climáticas são relativamente ligeiros: há um século tínhamos por exemplo num verão 30 dias terríveis, e agora temos 35. Não tínhamos 5 e agora 35 – o que, isso sim era uma mudança de peso, como os carros andarem a 40 e agora a 200… Dias de muito calor, muitos dias seguidos, grandes secas, grande instabilidade e trovoadas, dias de vento leste seco, dias muito ventosos, etc., sempre foram o prato do dia no Verão.

As agendas políticas usam-se da desgraça, cavalgando a onda mediática gerada pelos incêndios. O nosso problema não está em arder mais, antes na forma como arde. E esta forma, este padrão, deve-se a erros nossos na abordagem ao problema – falta de prevenção, de gestão e da própria estratégia de supressão – não se deve aos malfeitores, aos eucaliptos ou ao clima. Mas enquanto a desculpa funcionar, alimentada pelos interesses das agendas políticas, não saímos disto. Não sejamos totós.