1. Há duas formas de encarar o adjetivo favorito que costuma classificar António Costa: habilidoso. Ou o encaramos como alguém hábil que consegue executar o seu trabalho com perfeição — um pouco como os artesãos do antigamente. Ou o encaramos como alguém espertalhão — um chico-esperto que consegue dar a volta a quem lhe dá atenção. Pelo menos, isso é o que o dicionário nos diz sobre tal ambíguo adjetivo.

Ambiguidades à parte, a remodelação anunciada este domingo revela conclusões pouco positivas para o habilidoso Costa. Se não, vejamos:

  • É uma remodelação sem surpresa que surge a reboque da demissão de Azeredo Lopes, envolvido no extraordinário e terceiro mundista caso de Tancos. Logo, não se deveu a uma iniciativa política de António Costa. Foi espoletada por um escândalo: Azeredo era, e é, suspeito de ter tido conhecimento de uma operação ilegal, ilegítima e inacreditável da Polícia Judiciária Militar que negociou a entrega de parte das armas em Tancos com os próprios assaltantes;
  • O primeiro-ministro foi obrigado a substituir quatro ministros, sendo que dois deles atuam em áreas essenciais como a Saúde (onde se decidem muitos votos) e a Defesa (uma área de soberania). Isto é, António Costa foi forçado a reconhecer que o seu Governo estava muito mais desgastado do que o seu “otimismo irritante” deixava reconhecer.

2. Essa teimosia de António Costa não é boa, tal como já tínhamos visto em outubro de 2017 com a demissão da ministra da Administração Interna na sequência dos fogos que vitimizaram mais de 100 cidadãos (é importante não esquecer este número chocante). Quer com Constança Urbano de Sousa, quer agora com Azeredo Lopes, Costa teve um padrão de comportamento: tentou esconder as evidências e levou os casos até ao limite do aceitável.

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E porque o fez? Para se proteger politicamente. Enquanto as críticas estiverem centradas nos ministros, não sobem logo para o chefe do Governo.

E isso, do ponto de vista do Governo, faz sentido? Não, não faz. Porque demonstra uma tentativa muito pouco saudável de desresponsabilização ao nível do Executivo. Ou seja, ninguém é responsável por nada. A ministra da Administração Interna não era responsável pelo falhanço total e absoluto do sistema da Proteção Civil durante os incêndios de 2017 e o ministro da Defesa não foi responsabilizado pela insegurança dos paióis do Exército em Tancos.

Esta visão da gestão da coisa pública é muito negativa para a credibilidade do próprio Governo, logo do próprio António Costa.

Recorde-se que, a propósito de Tancos, o primeiro-ministro chegou a dizer que, se o Governo Passos Coelho tivesse investido num sistema de videovigilância dos paióis de Tancos, o assalto não teria ocorrido. Isto é, os seus ministros não eram responsáveis por nada mas sim o governo anterior de Passos “O Diabo” Coelho — que nunca conheceu nenhuma situação semelhante. Mais uma extraordinária habilidade de António Costa, a juntar a tantas outras.

3. O mais importante desta remodelação, contudo, prende-se com a chamada questão Pedro Siza Vieira — o ministro-adjunto de Costa que deixa de ser uma espécie de ministro-sombra da Economia e assume finalmente a pasta.

Colocam-se aqui várias questões:

  • A pasta da energia passa para o Ministério do Ambiente por causa da incompatibilidade que Siza já assumiu: o seu antigo escritório, a Linklaters, está a assessorar a China Three Gorges na OPA à EDP em curso. Logo, enquanto a OPA durar ou a Linklaters tiver os chineses como clientes, o segundo melhor amigo de Costa não pode decidir sobre matérias do setor energético;
  • A pasta da Energia também passa para o Ambiente por causa da EDP. É público e notório que a EDP estava em guerra com o secretário de Estado da Energia Jorge Seguro Sanchez em diversos dossiês. Seja porque exigiu em setembro à principal elétrica nacional a devolução de 285 milhões de rendas excessivas pagas ao abrigo dos polémicos contratos CMEC, em plena OPA da China Three Gorges. Seja porque o secretário de Estado criou uma taxa sobre as renováveis que deverá constar no Orçamento de Estado para 2019.

A EDP não se ficou e prometeu avançar para um tribunal arbitral para contestar o despacho de Seguro Sanchez que a obriga a devolver 285 milhões de euros.

Dito de outra forma: Jorge Seguro Sanchez foi um secretário de Estado incómodo para os interesses da EDP, como Eduardo Catroga comprovou numa entrevista recente ao falar em “indignação” na empresa.

O que leva a uma questão óbvia, a partir do momento em que está confirmada a saída de Seguro Sanchez: será que a EDP teve influência na remodelação governamental?

4. A questão Siza Vieira, contudo, não fica encerrada. Além da questão de saber se o Tribunal Constitucional considera que o futuro ministro adjunto e da Economia violou a lei das incompatibilidades ao criar com a sua mulher uma sociedade imobiliária cerca de 24 horas antes de tomar posse, há ainda uma terceira questão a realçar.

Pedro Siza Vieira era, até entrar para o Governo de Costa, um dos advogados de negócios mais importantes do país. Ou seja, teve como clientes alguns dos investidores e empresas mais relevantes do mercado português enquanto sócio da sociedade Linklaters — clientes estes que, devido ao sigilo profissional dos advogados, a opinião pública desconhece em absoluto.

Basta recordar, por exemplo, e tal como já tínhamos referido aqui, Siza Vieira defendeu os interesses do Grupo Barraqueiro no dossiê TAP. Já como ministro adjunto de António Costa, voltou a entrar no dossiê TAP para participar nas negociações que levaram à subida da posição acionista do Estado. Esteve, portanto, dos dois lados da barricada em tempos diferentes mas a defender interesses opostos.

Pergunta-se: será que Pedro Siza Vieira terá de pedir escusa mais vezes por razões de conflitos de interesse? Se houver rigor na aplicação do Código de Conduta, é possível que isso aconteça, atendendo que Siza Vieira passará a interagir diretamente com as empresas e investidores. O problema é que o Código de Conduta, com a exceção do caso do próprio Siza Vieira com a China Three Gorges (que só surgiu após notícia do Expresso) parece que foi feito para inglês ver, como se pode verificar aqui.

Esta área, a dos conflitos de interesse, é muito desvalorizada pela classe política portuguesa. Como tantas outras, é mais uma atitude de vistas curtas que merece censura e preocupação. Até porque a área do sector energético é fértil nesse tipo de situações, com as ‘portas giratórias’ entre o setor público e o setor privado a estarem neste momento sob escrutínio de uma Comissão Parlamentar de Inquérito.

Tal como várias organizações nacionais e internacionais têm vindo a denunciar nos últimos anos, como a Transparência e Integridade liderada por João Paulo Batalha, a área dos conflitos de interesse costuma ter como consequência situações de tráfico de influências, corrupção e de outros crimes económico-financeiros ligados ao processo de decisão. É por isso que é necessário um escrutínio intenso sobre esses conflitos de interesse.

Não está aqui em causa o nome Pedro Siza Vieira (ou até de Lacerda Machado, outro amigo do primeiro-ministro). O que se defende são regras transparentes e igualdade de oportunidades entre os diferentes agentes económicos no acesso ao mercado ou à contratação de serviços por parte do Estado. É a lei e o bom senso democrático que impõe essas regras básicas.

Artigo alterado às 11h46m