O momento que se vive, sem que ninguém questione as determinações do governo, como se não existissem opções que merecessem consideração, é muito perigoso. É particularmente perigoso para a sobrevivência a médio prazo do estado solidário e, muito em particular, do serviço nacional de saúde. Houve um momento em que uma coligação abrangente de PSD-CDS-PS poderia ter feito sentido. Esse momento passou há muito. A bipolarização é novamente importante, com opções claras e caminhos diferentes, ainda que com convergência nas questões essenciais do “estado solidário”, incluindo as do acesso universal ao direito à proteção da saúde.

Em texto anterior levantei algumas questões. No meu entender são das mais incómodas na governação. A pandemia e o momento que se lhe vai seguir são muito complexos e serviram de mote para essa primeira reflexão. Usei um texto do editor do The Lancet para colocar a visão radical de que a saúde não se poderá conformar com os ditames da economia. A visão provocadora de Richard Horton serviu para exemplificar como a interação entre economia e saúde, claramente biunívoca e interdependente, tem de ser redefinida de maneira a que uma não perca para a outra. Não há saúde sem economia e não há economia sem saúde. Ainda mais verdadeiro quando, em ambos os casos, estamos a falar da gestão de bens finitos e escassos. Horton vai mesmo mais longe e, bem, sublinha a necessidade de haver políticas sanitárias integradas com respostas sociais, porque as segundas são dos mais importantes determinantes da saúde.

Ora, se me parece claro que a saúde não pode ser sacrificada pelos sacrossantos dictats da política financeira, mais do que da política económica, também é verdade que as necessidades económicas (poluidoras, antisanitárias e consumidoras de espaços e recursos naturais) não podem comprometer a saúde. Logo, há lugar a que se estabeleçam equilíbrios que salvaguardem os interesses das populações. O desenho de políticas saudáveis não pode ser um regresso espartano à exclusividade da locomoção a pé, tal como o progresso económico já não nos pode autorizar a poluir para lá capacidade de absorção atmosférica de mais CO2. Inúmeras vezes me tenho referido à necessidade de, sem comprometer o progresso, ser indispensável a avaliação de impactos na saúde de todas as medidas tomadas, em particular das que envolvam investimentos públicos. Tarda que assim seja feito.

Veja-se, a título de exemplo, a satisfação com que o ministério da saúde se orgulha de não ter precisado do sector privado, esquecendo-se que o SNS foi completamente afogado em Covid-19, com custos sanitários e sociais que ainda terão de ser pagos. E quanto ao sector social, basta ver como os lares e unidades de cuidados continuados ficaram no fim das prioridades da protecção ao SARS-CoV-2. Eu, que tenho sido crítico de alguns aspetos da comunicação governamental, tenho de aqui cumprimentar a máquina de propaganda do governo. Transformaram o fiasco inicial nos lares em uma campanha de testes com impacto mediático assinalável. É caso para, sem hesitação, reconhecer o milagre.

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As perguntas que deixei incidiam sobre a necessidade de compatibilizar a capacidade de comprar, a efetividade das medidas que se aceitará pagar, os custos das oportunidades perdidas, a ponderação entre a mortalidade que podemos considerar aceitável no curto prazo e os impactos a longo prazo que se podem esperar. Levantei a questão de saber se é mesmo aceitável, à outrance, prejudicar a economia e as finanças pública em nome da saúde e se as medidas tomadas no contexto da pandemia terão sido a mais adequadas para enfrentar mais do que a mortalidade exclusivamente devida à Covid-19. Quanto nos custou e custará cada QALY de vidas salvas à Covid? Terminei, considerando que não sendo possível manter a situação de sufoco económico em que mergulhámos, o governo deve atuar para repor a normalidade e, ao mesmo tempo, proteger as pessoas e o SNS de mais vagas pandémicas. Note-se que a pandemia de Covid-19 tem caraterísticas singulares, embora se possam estabelecer paralelos com a gripe ou mesmo o Dengue no Brasil, mas há pandemias de doenças crónicas que tenderão a agravar-se nos próximos meses e anos.

No fundo é um problema clássico de saúde pública e de políticas de saúde, a necessidade de estabelecer prioridades. O estabelecimento de prioridades em política de saúde é um dos temas mais difíceis da política. O que é mais importante? O mais mortal? O mais frequente? O mais dispendioso? O com maior impacto mediático? O que satisfaz o grupo de pressão mais ruidoso? Não é fácil responder a nenhuma destas perguntas e nem há um consenso internacional que se possa copiar.

Se olharmos para o desenho das políticas e as sucessivas intervenções dos atuais responsáveis pelo ministério da saúde fica-nos a impressão de que sempre houve, antes mesmo da pandemia, uma preocupação quase exclusiva com o imediato. Dessa falta de visão de médio e longo prazo resultou um conjunto de fragilidades e de impreparação sistémica, agravada por obstinação ideológica, que nos levou à situação de pânico de que só poderia resultar um Estado de Emergência. Estado de Emergência que, tendo sido importante para habilitar o governo a tomar medidas mais drásticas e de que resultaram um controlo da procura de serviços, a descompressão do SNS e a redução comparativa da mortalidade por Covid-19, poderá ter tido efeitos adversos ou secundários a que me referirei futuramente.

Acima de tudo, este Estado de Emergência não serviu para que, com o tempo ganho, se tivesse desde já iniciado o processo de recuperação do SNS que, como já escrevi, na ausência de investimentos pós-pandémicos irá ficar pior. Não se conhece estratégia, simplesmente porque ela talvez ainda nem exista ou não tenha havido tempo para a formular. Posso compreender que os recursos de pensamento estejam ainda demasiado centrados em encontrar consenso sobre tão magnas questões como saber se devemos levar máscara para o escritório? Este é um tema importante sobre o qual não parece estar a ser fácil encontrar consenso luso. Quase tão importante como a tempestiva intervenção da comissão nacional de protecção de dados a propósito da salvaguarda dos Celsius de cada um. É um dado pessoal relevante, sem dúvida, porque é único e definidor do “eu”. Mais do que tenho 37,5oC eu sou o dos 36oC de manhã e 37oC à noite e o meu patrão não pode saber! Uso calças 44, às vezes 46, agora que estou mais gordo.

Chegados aqui, para que se possa responder a algumas perguntas que formulei anteriormente – Como recuperar o SNS em contexto de ainda maior sufoco financeiro? Como preparar a retoma sem prejuízo dos ganhos alcançados? Como responder a vagas pandémicas posteriores? Como melhorar o estado geral de saúde da população e proporcionar aumentos de longevidade com qualidade? – há  que revisitar alguma da literatura e os  inúmeros estudos de situação que já foram feitos para Portugal. Há que definir objectivos concretos e mensuráveis com epidemiologia que não se perca na contagem propagandística de “recuperados” da Covid-19 e olhe para as doenças crónicas que continuam e continuarão a matar depois da Covid-19. Há que ter uma atitude ainda mais pedagógica sobre o papel de cada um na manutenção da saúde de todos. Há que assumir o que é prioritário. É preciso, acima de tudo, ser capaz de apresentar contas simples, fáceis de entender, sem que os investimentos continuem “cativados”. Não se tratará apenas de gastar mais, o que será inevitável para que a sustentabilidade do SNS seja possível, mas escalonar onde se deve gastar primeiro e ao longo de um período que terá de se estender para lá da legislatura. No entanto, o escalonamento temporal do programa de investimentos e de recuperação do SNS não é compatível com sucessivos adiamentos, já que a procrastinação é a forma como a plurianualidade é habitualmente vista neste País. De orçamento em orçamento lá continuam inscritos os mesmos desígnios de modernização, construção e ampliação, sem que nunca sejam concretizados.

Mas nada disto será possível sem um concerto de posições entre os principais partidos políticos da área democrática. Em tempos sugeri um conjunto de pontos para iniciar o caminho. Para essa “união”, se ela for baseada na recolha de opiniões, na elaboração de respostas pragmáticas, sem preconceitos ideológicos, não precisaremos de um governo de salvação. Bem pelo contrário, será preciso uma oposição que nos salve do governo que temos.