É sempre fascinante observar como, em certos domínios, a acumulação de testemunhos empíricos não consegue demover as pessoas de uma ideia ou outra, nem sequer suscitar-lhes a mais leve dúvida sobre a justeza dessas ideias. Como se houvesse certas zonas do pensamento em que dispuséssemos de uma imunidade soberana e definitiva aos factos, quando não o dever moral e político de militantemente os ignorar. A quantidade de catátrofes causadas por essa particular liberdade do espírito não se conta e, nesta vida em que tudo é incerto, uma coisa é certa e segura: será assim sempre, aconteça o que acontecer.
Um exemplo indisputável dessa curiosa liberdade e das suas consequências é o da resistência a aceitar que a chamada economia de mercado é mais susceptível de gerar riqueza e bem-estar para o maior número de pessoas do que qualquer variante, mais ou menos estatista, de “socialismo”. Não estou a dizer que seja em si mais “natural” ou sequer mais adaptada a uma natureza humana intemporal e às paixões que a caracterizariam. A mais breve incursão pela história e pelo estudo das formas que as sociedades humanas tomaram ao longo dos tempos chega-nos para perceber que que pouco nestas é “natural” e que os infinitos modos de organização da sociedade sempre desenvolveram modelos de racionalidade incompatíveis entre si e que, aos olhos uns dos outros, aparecem como flagrantemente irracionais.
Nem sequer estou a querer dizer que o chamado capitalismo seja o resultado de uma evolução da espécie em direcção a uma perfeição possível na organização das comunidades humanas. De facto, esse era o ponto de vista de Marx, com a ressalva que perfeições maiores – o socialismo e o comunismo, este último definitivamente – necessariamente viriam a seguir. Estou apenas a dizer que, dadas as expectativas generalizadas dos indivíduos que formam as nossas sociedades, os seus desejos e os seus projectos, a economia de mercado é, com todos os seus defeitos e disfuncionalidades, testavelmente a mais satisfatória organização económica ao nosso dispor, com provas dadas ao longo dos tempos. E, já agora, a mais compatível com a concepção de liberdade mais comum nos nossos dias.
Admitindo isto, formulado aqui muito dogmticamente, surge naturalmente a questão: porquê então gente que partilha por inteiro o conjunto dos valores da maioria das pessoas – desejo de maior riqueza e bem-estar – e que não aspira de modo algum ao retorno aos encantos da vida social das tribos de caçadores-colectores ou, por exemplo, à organização social dos astecas, como suponho ser o caso de Jerónimo de Sousa e Catarina Martins ou de qualquer socialista da ala esquerda do PS, insiste na adopção de políticas que contrariam, do princípio ao fim, esses mesmos desejos que os movem? Afasto a explicação que vê nessa preferência a manifestação de uma vontade de controle directo da sociedade no seu todo, expressão de uma tendência perversa e totalitária da psique humana. Não porque a explicação seja falsa (não creio que seja), mas porque fica aquém do que me parece ser o motivo que mais imediatamente conduz a uma escolha que claramente é, nos seus efeitos praticamente inevitáveis, contraditória com os desejos que se tomam como ponto de partida (aumento da riqueza e do bem-estar da maioria dos indivíduos).
Esse motivo é, verosimilmente, a exigência de justiça. Serei o último a negar que tal exigência é uma das maiores conquistas do pensamento ocidental, sobre a qual a filosofia reflectiu desde os seus primórdios, permanecendo uma das suas questões fundamentais. A Ética a Nicómaco, de Aristóteles, sem dúvida um dos mais belos livros de filosofia que possuímos, coloca já alguns dos problemas que continuam, no essencial, a ser os nossos. E, dentro da nossa tradição, o retomar perpétuo da questão é quase a condição natal do pensamento político. Sem ela, todo o nosso modo de vida seria completamente diverso. E diverso para muito pior, convém acrescentar.
Acontece que o conceito de justiça, como facilmente se depreende, é tudo menos unívoco, e isso não apenas de facto como de direito, isto é, na sua própria essência. Deste modo, a oposição de Aristóteles a Platão, ou, nos nossos dias, de Robert Nozick a John Rawls, constituem fragmentos de um debate interminável. Quer dizer: não há nenhum conceito único passível de receber um assentimento universal. Há sim um debate permanente e permanentemente renovado sobre o seu real significado. E acontece mais. Acontece que toda e qualquer concepção da justiça só pode aspirar a uma efectiva elucidação da natureza desta e a um efeito benéfico sobre a sociedade se atender às características próprias desta, que são em primeiro lugar determinadas pelo conjunto de desejos e valores que movem os seus indivíduos, ou se se quiser, pelo tipo humano que produzem. Caso contrário, caso não exista tal atenção à forma antropológica que representa a realidade mais profunda da sociedade, a imposição de uma qualquer concepção de justiça, por mais bela que nos pareça no mundo das ideias, conduz direitinho à miséria social, quando não ao horror puro e simples.
A tragédia, uma tragédia que nada nunca tornará impossível, é que a cegueira face às condições passionais da vida humana, e em primeiro lugar as dos próprios, à natureza dos desejos e dos medos que cada sociedade cria, não é algo jamais eliminável. Uma boa parte daquilo que é conhecido pelo nome de “esquerda” pratica-a com uma abundância e uma persistência inusitadas. Por isso, em nome de uma concepção da justiça colhida no mundo das ideias e adoptada como verdade inquestionável, propõe políticas que têm por efeito o exacto contrário daquilo em cujo nome são propostas. Em vez da riqueza, a pobreza. Em vez do bem-estar, a miséria. Claro que tudo seria muito diferente se essas políticas se afirmassem explicitamente como defensoras de um retorno a qualquer forma pré-capitalista de organização económica. Aí, pelo menos, haveria coerência. Mas não é fácil imaginar nenhum dos seus mais ilustres representantes a advogar um tal retorno. Usando e abusando da capacidade humana de descurar todo e qualquer testemunho empírico, preferem falar do futuro, do socialismo ou do comunismo, como se o futuro de que falam não fosse o que de facto é: um passado negro. Negro, pelo menos, aos nossos olhos e também aos olhos deles quando os abrem – se os abrem.