Meia década depois, regresso ao Brasil. Se da primeira vez que aqui estive, saiu um livro (chamado “Arame Farpado no Paraíso—o Brasil visto de fora e um Pastor visto de dentro”, que vocês podem e devem comprar em www.florcaveira.net), agora, pelo menos, sai já um texto. Em 2017 só consegui ver o Rio de Janeiro ao longe, do aeroporto, numa escala breve entre São Paulo e Fortaleza. Escrevo-vos neste momento de Niterói, na casa da Alê, do Alberto e do Calebe, com uma vista indescritível para a Cidade Maravilhosa. É o quinto dia nesta cidade e, uma vez mais, sinto-me incapaz de fazer justiça ao que vejo, mas mais incapaz ainda de não me dedicar ao assunto.

Uma das piores coisas que nos pode acontecer na vida é sermos turistas. O turista é alguém que viaja sem ver. Ele bem pode olhar lugares novos, fotografá-los, emoldurá-los como troféus das suas expedições mas, no fim, não saiu realmente de onde estava. O turista tem no seu trânsito incessante a sua tragédia: está condenado a correr mundo sem que o mundo corra por si. O turista é o Caim bíblico: está “lançado da face da terra”, carregando uma marca dada por Deus para que nada o fira. Tem voos para qualquer poiso mas nenhum poiso se lhe mistura no sangue. O seu pronto passaporte funciona como a mais triste invulnerabilidade.

É por esta triste invulnerabilidade que os turistas se vão turistificando irremediavelmente: se viajámos o ano passado, temos de viajar este ano, se já fomos a Paris, temos de ir a Roma, e por aí fora. Os sítios mudam mas o retrato é sempre o mesmo. Podemos esbanjar a nossa felicidade turística na rede social mas é a marca de Caim o filtro usado. A vantagem que Caim tem sobre nós é que sabia ser amaldiçoado e nós, iletrados nas Escrituras, envergamos as nossas expedições lúdicas como bênçãos. Gosto de viajar mas é quando viajo que mais colocado em causa me sinto. Há momentos, nesta vinda ao Brasil que estou a fazer, em que pergunto a Deus: Senhor, subi aos píncaros ou desci ao vale da sombra da morte?

Ontem subimos ao Corcovado. Caramba. Não consigo fugir do cliché óbvio de imaginar a reacção dos portugueses a chegar aqui pela primeira vez. Passou meio milénio e esta terra continua a deixar-nos sem palavras. Por outro lado, o português que aqui se fala é o Portugal que ainda está por aqui chegar—não somos compreendidos. Tomamos este lugar como parte da nossa história mas a nossa história aqui, em 2022, parece estar toda por fazer. Quem é um português no Brasil do Século XXI? O mais fácil é ser um turista e o mais fatal é esse turista ser. Odeio a ideia de ser um turista numa terra destas. Quero mais do que a marca de Caim num passaporte recheado.

Ainda ontem, na noite de sexta-feira, conversávamos com o Alexandre e a sua noiva Laura, e com o Felipe e a sua mulher Priscila, num jantar de janelas e varandas abertas. A Priscila descreveu, a determinada altura, o Rio de Janeiro como “o miolinho da alegria”, uma espécie de epicentro da subida da febre no país. Não era um elogio mas também não era uma praga rogada. Era, acho, o reconhecimento de que tendemos a colocar espelhos nos lugares que habitamos. E se olharmos o nosso reflexo, quem somos não pode ser dissociado do lugar onde nos olhámos. Por alguma razão, o Rio dá corpo à alegria que nos brasileiros é farra e fado.

Quando ando por estes lugares, viajando tão longe da minha casa, vou da euforia à melancolia em menos de nada. E sinto-me no miolinho mesmo, no caroço de quem sou, agora que a fruta doce já foi comida pelo apetite voraz do viajante. A alegria de estar no Rio de Janeiro é também poder sangrar aqui. Obrigar a terra a ser o paraíso é o destino destravado do turista—é preciso parar para perceber.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR