Nas eleições presidenciais de 2004, eu estava nos Estados Unidos. Na altura, o confronto era entre John Kerry e George W. Bush. E, claro, toda a gente em Portugal queria que Kerry ganhasse. George W. Bush era um bronco, que todos sabiam ser incapaz de liderar um grande país. Eu, português nos EUA, não era excepção e apoiava John Kerry.

Como se de uma Super Bowl se tratasse, juntei cerca de 15 colegas do doutoramento para ver os debates. Como é evidente, na minha perspectiva imparcial, John Kerry ganhou todos. Mas, há sempre um mas, havia uma colega que achava que Bush ganhava sempre. Por coincidência, ou não, era também a única que apoiava George W. Bush. Era a nossa mascote republicana.

Lembro-me de, logo no primeiro debate, o jornalista ter pedido explicações a George W. Bush por se terem esgotado as vacinas para a gripe naquele ano. George W. Bush dedicou toda a sua resposta a explicar como era muito importante que as crianças, os velhinhos e os doentes fossem vacinados. Por isso, ele próprio tinha dispensado a sua vacina. Nada sobre as causas da falha, nada sobre o que ia ser feito para evitar situações destas no futuro, enfim nada de substancial. Apenas se limitou a dizer que, como era muito boa pessoa, não tinha levado a sua dose para que alguém que necessitasse mais não ficasse sem ela. Ia eu começar a gozar com esta (não) resposta, quando reparo que a nossa mascote republicana olhava embevecida para a televisão. Os seus olhos perguntavam: como era possível alguém não votar numa pessoa tão boa? Já quando Kerry respondeu à mesma pergunta, usando argumentos inteligíveis e falando da hipótese de trazer vacinas do Canadá, essa minha colega simplesmente desligou. Se nessa altura houvesse iPhones, com certeza que teria aproveitado a resposta de Kerry para consultar o email. O resto da história é conhecida. Bush perdeu todos os debates e, para surpresa de todo o comentariado nacional, ganhou a eleição.

Um dos meus amigos jurou que ia mudar de nacionalidade. E assim foi: quando acabou o doutoramento, foi dar aulas para uma universidade inglesa e adquiriu nacionalidade britânica. Hoje, com a saída do Reino Unido da União Europeia, quer adquirir uma outra nacionalidade europeia. Já me perguntou se conheço alguém que queira casar com ele. Assim adquire a nacionalidade portuguesa por casamento e, em troca, dará a nacionalidade britânica. Pode ser com um homem, desde que fique claro que é um casamento de conveniência sem qualquer probabilidade de consumação do acto. Se houver alguém interessada ou interessado, por favor contactem-me pelo email que vêem aí no fim do artigo.

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Voltando às eleições, com a (re)eleição de Bush, percebi que não podia aplicar os nossos critérios tradicionais para avaliar as hipóteses dos candidatos do Partido Republicano. Todo aquele universo me era estranho. Lembro-me, por exemplo, de, em 2007, perguntarem aos candidatos republicanos se acreditavam no evolucionismo. Depois de John McCain ter dito que sim, que acreditava, sentiu necessidade de acrescentar que quando vê o pôr-do-sol no Grand Canyon sente a mão de Deus. Caso contrário arriscava-se a perder as bases.

Foi por esta altura que passei a seguir atentamente Ann Coulter e fiz dela a minha especialista em assuntos republicanos. Escolhi-a por diversos motivos. Tem um sentido de humor corrosivo, usa argumentos que me parecem completamente incoerentes, apesar de ser obviamente muito inteligente, tem tiradas racistas, machistas e, last but not least, é alumna da Cornell University. Ann Coulter é uma espécie de indicador avançado da retórica da direita americana. Por exemplo, já há muitos anos que defende que muçulmanos devem ser impedidos de andar de avião nos Estados Unidos. Ficou até famosa a resposta que deu a uma estudante muçulmana (Fatima de seu nome) dizendo-lhe que se não pudesse apanhar um avião que apanhasse um camelo.

Foi em meados de 2015 que publicou o livro “Adios, America: The Left’s Plan to Turn Our Country into a Third World Hellhole!”, onde abriu o caminho para o discurso anti-imigração e acusou os imigrantes latinos de serem de uma cultura onde a violação sexual é rotina. Foi Ann Coulter que, antes de ninguém, e perante a galhofa geral, previu que Trump ganharia a nomeação republicana.

https://www.youtube.com/watch?v=VfqVih7IFlI

Para os nossos padrões, ninguém razoável deixará de achar que Hillary Clinton ganhou, por larga margem, o debate de segunda-feira passada. Teve tiradas excelentes, mostrou um grande domínio de todos os assuntos, soube lidar como ninguém com, literalmente, várias dezenas de interrupções. A vitória foi tão clara que, no fim, Donald Trump se queixaria de lhe terem sabotado o microfone. A maestria dela já tinha ficado comprovada nos diversos debates em que participou com Barack Obama nas primárias de 2008, ganhando quase todos.

Mas a verdade é que os nossos padrões não contam. Como explica a minha especialista em assuntos republicanos, Ann Coulter, quem vota em Trump está apenas preocupado com a imigração e com os imigrantes. Mais do que ser o tema mais importante, é, simplesmente, o único relevante. Sobre esse assunto, quase nada se discutiu ontem, nem sequer se falou no muro que Trump quer construir. Na verdade, dadas as peculiaridades do sistema eleitoral americano, os Estados decisivos são a Florida, Michigan, Ohio ou a Pensilvânia. E, que eu tenha dado conta, o único candidato que falou para estes eleitores foi Trump quando se referiu aos empregos que deixaram de existir.

Veremos como evoluirão as sondagens na próxima semana. Para já, Nate Silver não consegue apontar um claro favorito, mas acha que depois da vitória no debate, Hillary deverá ganhar alguma vantagem nas sondagens. Sou mais pessimista. A minha aposta é que este debate não terá qualquer impacto relevante. Excepto, claro, no ego de Hillary e dos seus apoiantes.