A única certeza é que não há certezas” (Fernando Pessoa, poeta português, 1888-1935)

A incerteza dos acontecimentos é sempre mais difícil de suportar do que o próprio acontecimento” (Jean Baptiste Massillion, bispo francês, 1663-1717)

O meu sentido de espírito de cidadania impele-me a escrever mais uma Carta Aberta à Ministra da Saúde do meu País para abordar dois assuntos que reputo de relevante importância, e que, embora aparentemente tenham pouca relação um com o outro, no seu âmago abordam o mesmo tema, ou seja, o das liberdades e das responsabilidades dos cidadãos e dos profissionais de saúde perante alguns dos temas mais mediatizados, no contexto das doenças infeciosas.

Estou em confinamento domiciliário com a minha esposa (também médica), o meu filho e a minha nora (enfermeira), ambos residentes em Inglaterra por aí estarem a trabalhar, desde o dia 24 de dezembro do corrente ano, por termos contactado na véspera, ao jantar, com uma pessoa que tinha feito teste de antigénio para infeção por SARS CoV-2 na véspera, cujo resultado tinha sido negativo, mas que surgiu, durante a refeição, com uma sintomatologia caracterizada por ligeiro mal-estar geral e cefaleias, embora apirético, o que foi atribuído ao stress inerente a graves problemas de índole pessoal e familiar com que se tinha debatido nessa mesma tarde. No dia seguinte, todos nós realizámos teste de antigénio para irmos passar a noite de Natal em família e em suposta segurança, tendo o resultado de todos os elementos da minha família sido negativo, tal como o da nossa afilhada de casamento (também enfermeira). Contudo, o do seu companheiro, que connosco tinha jantado na véspera, apesar de continuar apirético, foi positivo.

Todos os contactantes começaram com muito discretas queixas clínicas no dia seguinte e testaram positivo às 48h, ao passo que eu permaneço negativo (teste de PCR efetuado aos 5º e 7º dias) e sem qualquer sintomatologia. Todos tinham três imunizações prévias (dois há menos de duas semanas) e o doente portador de COVID, apenas duas. Uma das pessoas já tinha sido infetada com gravidade clínica moderada, em janeiro de 2021, adquirida em meio laboral no âmbito dos cuidados de saúde, uma hora depois de ter sido vacinada com a primeira dose, tendo recuperado da sua incapacitante astenia ao fim de cerca de um mês, sem ter tido necessidade de internamento. Outra destas personagens soube que estava grávida no dia em que fez o teste de antigénio que se revelou primeiramente negativo, o que foi acolhido com um misto de espontânea alegria e de natural apreensão.

Quantas histórias parecidas com esta atingiram recentemente outras famílias no nosso País e por esse Mundo fora, pergunto? Num texto publicado no Observador online no dia 10 de dezembro, intitulado Algumas propostas para melhorar o SNS (“Carta Aberta à Ministra da Saúde em tempos de pré-campanha eleitoral: ideias arrojadas em defesa de uma nova estratégia consequente, voltada para o presente e para um futuro próximo, previsível e desejável”), antevi a inevitabilidade de passar a implementar uma outra estratégia a prazo, que estimei poder ser depois do primeiro trimestre de 2022, condicionada à verificação de determinadas condições aí devidamente explanadas, tendo então afirmado: “… é que, penso com sincera convicção, os cidadãos ditos ‘leigos’, os doentes não COVID padecentes de outras doenças bem mais prevalentes ou com maior gravidade clínica (algumas delas também transmissíveis), tal como, certamente, os agentes económicos, não irão continuar a entender ou a aceitar bem que, garantidas que estiverem as premissas … enunciadas, se continue a fazer aquilo que temos estado a fazer (mas bem, entenda-se), mas que não é mais viável, ou sequer desejável, continuar a fazê-lo por muito mais tempo, como se nenhuma inovação científica tivesse ocorrido até agora. Se tudo for didaticamente explicado, os seus defensores (como fui e sem ponta de arrependimento) do estado de exceção que vivemos, nunca poderão ser acusados de incoerência. Até porque se sabe que outras pandemias surgirão e esta terá constituído uma enorme fonte de aprendizagem, pelo que importa mantermo-nos alerta, mas, nunca, em estado de paralisante pânico ou com uma mais do que reprovável displicência, para ganharmos fôlego e termos autoridade moral para os próximos combates que eventualmente vierem a surgir e que nos exigirão, não menos discernimento e bom senso”.

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Na altura não se sabia, ainda, aquilo que hoje já se sabe de experiência feita, ou seja, qual seria, ao certo, a gravidade clínica desta infeção, tal como não antevíamos com exatidão, a dinâmica epidemiológica que iria ter, mesmo antecipando que seria, como se veio a verificar, muito mais transmissível. Sabemos hoje, com um grande grau de certeza, que aqueles que necessitam de cuidados hospitalares são maioritariamente os não vacinados ou incompletamente imunizados, tal como, ainda em maior percentagem, os que vão ter de ser tratados em Cuidados Intensivos.

Há que, então, ter a coragem e a lucidez de interpretar a evidência objetiva daquilo com que nos confrontamos presentemente. Em termos objetivos e sintéticos, deparamo-nos com uma infeção com um potencial de transmissão que escapa completamente às medidas até agora recomendadas. Contudo, felizmente, para quem está imunizado, tem uma gravidade clínica muito menor para a grande maioria dos afetados, ao contrário do que aconteceu no início de 2021. Assim sendo, perante a TOTAL INCAPACIDADE de pôr em prática as normas (ainda) em vigor e a sua quase TOTAL INEFICÁCIA (refiro-me, sobretudo, aos isolamentos profiláticos, que são demasiado longos, à triagem telefónica da Saúde 24, que deixa sem resposta milhares de cidadãos todos os dias, ou o acompanhamento clínico à distância de todos os que estão em quarentena domiciliária, que consome uma enormidade de tempo e de energias, sem se conseguir chegar a todos e, logo, de impacto mais do que questionável), arriscamo-nos, assim, a ver ruir a resposta ao nível dos cuidados hospitalares, dos cuidados primários e da rede de Saúde Pública, já de si tão exauridos em meios logísticos e humanos para fazer face à sua rotina diária, quanto mais ao que decorre da presente avalanche pandémica.

É que, presentemente, com praticamente dois anos de luta contra este vírus e todas as suas nefastas consequências, os Serviços de Urgência hospitalares estão presentemente transformados em Centros de Testagem, onde quem não consegue obter orientações prontas e credíveis por parte da Saúde 24, busca aí os meios que possibilitem o cumprimento das exigências burocráticas que dão acesso, pelas regras em vigor, a poderem fazer quarentena sem serem penalizados nos seus salários, ao passo que os médicos dos Centros de Saúde dividem-se entre as suas habituais atividades de assistência às populações, com as no ADR da Comunidade, a vigilância da vacinação e o controle dos muitos milhares de infetados no seu domicílio, a grande maioria com uma doença, felizmente, desprovida de qualquer gravidade significativa, para além do preenchimento das bases de dados do SINAVE e do TRACE COVID. Como será fácil de concluir, nenhum destes profissionais tem as mínimas condições para desempenhar com a necessária eficácia e celeridade todo este conjunto de magnânimas tarefas de forma responsável. O que é agravado pelas centenas de profissionais presentemente em isolamento domiciliário, quer por estarem infetados, quer por terem sido simples contactantes.

Devido as todas estas condicionantes enunciadas, o que se impõe é passar a concentrar o tempo e a energia dos profissionais de saúde, designadamente dos médicos, essencialmente no acompanhamento e no tratamento de todos as pessoas que estiverem realmente doentes (incluindo os infetados por COVID) ou daqueles que necessitam de cuidados domiciliários, para que se evite o seu hipotético futuro internamento. Não será, assim, a altura de refletir e de se reconhecer que se tem de alterar a estratégia, deixando de fingir que está tudo controlado, mas com isso estar-se antes a precipitar o colapso total dos cuidados de saúde e da economia, que também é necessário saber salvaguardar, para termos os meios adequados no setor da Saúde?

Não seria mais lógico tornar a vacina obrigatória e generalizar e acelerar a revacinação dos demais cidadãos, incluindo os da idade pediátrica, atendendo à sua eficácia e inocuidade comprovadas, pois quanto mais abrangente for, menos transmissão comunitária haverá e menor será a hipótese de surgirem novas estirpes mutantes, dando espaço, então, para que os verdadeiramente doentes possam ser tratados com a necessária eficácia e celeridade, evitando-se a consequente generalização do mais que nefasto burnout dos profissionais, pergunto? É, pois, por tudo isso, muito importante, ter sempre em mente aquilo que Voltaire e Públio Tácito, respetivamente um reconhecido filósofo francês e um historiador e senador romano, nos quiseram transmitir quando deixaram dito lapidarmente para a posteridade, o primeiro, que “um dia tudo será excelente, eis a nossa esperança; hoje, tudo corre pelo melhor, eis a nossa ilusão”, e, o segundo, que “quando se dissipa o património com loucuras, procura-se restaurá-lo com culpas

Terminaria este assunto, transcrevendo parte do Preâmbulo do meu mais recente livro, intitulado “Reflexões em tempos de pandemia: Histórias de vida, de prazer, de sofrimento e de morte”, editado em Novembro de 2021, no qual escrevi o seguinte: “… por consequência, há forçosamente que reconhecer que não há muito mais tempo disponível, nem mais ou melhores opções alternativas para prevenir aquilo que, numa Conferência que efetuei em maio do corrente ano no Congresso ‘Pandemias’, a convite do seu Presidente, o colega e amigo Saraiva da Cunha, intitulei de “tsunami microbiano”. Para isso, necessitamos de tomar verdadeira consciência dos impactos que as alterações ao nível dos nichos ecológicos que a predadora atividade Humana e a poluição, com notórias implicações climáticas, irão produzir ao nível planetário a um ritmo crescente e com impactos avassaladores a médio-longo prazo, se, a curto prazo, não soubermos inverter sustentadamente uma trajetória que só nos poderá conduzir a crises sanitárias, económicas e sociais cada vez mais frequentes, profundas e prolongadas.

Assim, só através de uma verdadeira solidariedade intergeracional, ao nível mundial, poderemos encarar estes desafios. Veja-se, por exemplo, as implicações do facto de o ritmo de vacinação ser muito díspar entre os países dos diversos continentes, tal como Tony Blair, ex-Primeiro Ministro inglês e responsável pelo Institute for Global Change afirmou num relatório recentemente produzido, intitulado “Africa´s perfect storm”. Aqueles que estão com um ritmo muito superior (os mais ricos e organizados), ficarão igualmente vulneráveis ao facto de, nos restantes (mais pobres e desestruturados), o ritmo mais lento propiciar à mais fácil e mais rápida emergência de novas variantes mutantes que venham, eventualmente, a atenuar, numa proporção variável, mas impossível de ser antecipada com exatidão, a eficácia decorrente deste esforço hercúleo que todos temos estado a fazer, mas que não deixará ninguém a salvo, mais tarde, ou mais cedo.

Princípios de equidade e de prudência que se deveriam aplicar também, logicamente, à questão do acesso aos medicamentos que se comprovarem ser verdadeiramente úteis para o seu tratamento, garantindo que a sua aquisição seja comportável por todos, independentemente da respetiva capacidade económico-financeira de cada um. É o que fica subjacente numa frase de um artigo de Cook e colaboradores, intitulado “Reflections on 40 years of AIDS” recentemente publicado na Revista Emerging of Infetious Diseases, editada pela Centers of Disease Control dos Estados Unidos da América do Norte, onde, ao traçar um certo paralelismo com o que se passa com a presente pandemia, se afirma textualmente “ninguém está a salvo enquanto não o estiverem todos”.

No que concerne ao outro problema que pretendo aqui abordar, diria que em 2017 publiquei na Revista da Ordem dos Médicos um artigo intitulado, “Ignorar ou enfrentar o problema: O dilema que impõe uma reflexão e uma decisão inadiáveis”, a propósito de um caso clínico de tuberculose extensivamente resistente de um cidadão eslavo que se tinha evadido de uma prisão da Sibéria e entrado clandestinamente em território Comunitário através da Polónia, tendo vindo para Setúbal por razões que nunca consegui apurar, mas que foi acompanhado por agentes da Polícia Judiciária, dado que a Interpol o havia vigiado o tempo todo através do computador e do telemóvel sem o seu (e meu) conhecimento, depois de ter tido alta ao fim de seis meses de internamento num quarto de isolamento respiratório do Serviço que dirijo no CHS, para continuar o seu tratamento no CDP de Vª Nª de Gaia, por decisão do próprio.

Nesse mesmo artigo, contava ainda dois outros casos clínicos de duas jovens infetadas por VIH e grávidas, gravidez que afirmavam querer que prosseguisse, uma delas com um hipotiroidismo grave e não controlada, que se recusavam a ser tratadas com a medicação apropriada para os seus problemas de saúde. A que tinha o hipotiroidismo, teve um aborto espontâneo ao 3º mês de gestação, e a outra é a única paciente em Portugal a estar presentemente medicada com terapêutica antiretrovírica injetável, já que nunca tinha conseguido engolir qualquer medicamento desde a infância, tal como foi testemunhado pela sua própria mãe. Hoje, com um filho saudável com cerca de quatro anos de idade e com a sua doença controlada, sendo capaz de criar o seu filho e de ser uma cidadã ativa, agradece-me penhoradamente o facto de ter conseguido, nessa altura, sensibilizar um Juiz para que fosse conduzida compulsivamente ao Serviço de Urgência, no intuito de ser internada e tratada convenientemente.

No mesmo, escrevi: “… assim, parece-me inaceitável, por exemplo, que qualquer mulher grávida, como nos casos relatados, entenda que tem o ‘direito’ de recusar um tratamento que tem fortes possibilidades de, não só implicar um agravamento do seu próprio estado de saúde, mas sobretudo que o pode produzir, e de forma irreversível, a alguém que não pode fazer quaisquer opções e muito menos defender-se de qualquer ameaça séria à sua própria saúde, ou que … ponha o seu semelhante em forte risco de poder contrair uma infeção potencialmente fatal, quando tal pode ser muito ‘facilmente’ evitado através de uma atitude de cidadania responsável: deixar-se tratar adequadamente da doença infeciosa transmissível de que padece e contraiu, para depois ter saúde para fazer as opções de vida que muito bem entender, incluindo a de não se tratar das restantes doenças de que vier a ser acometida, mas não pondo nunca em causa o intemporal desígnio ético da Humanidade – contribuir conscientemente para evitar a propagação da doença infeciosa transmissível grave e potencialmente fatal que tanto a afete, quanto a qualquer outro ser humano, e, designadamente, a um embrião ou a um recém-nascido. Não caberá então, neste último cenário, aos profissionais de saúde e às suas organizações, designadamente aos médicos, a defesa intransigente destes princípios enunciados e das inocentes crianças que estiverem nestas circunstâncias, pergunto?

Questiono, por fim, a exemplificar toda esta complexa problemática: no limite, quem apoiaria conscientemente a decisão de alguém que saiba que lhe foi diagnosticado, por exemplo, uma infeção tão grave como o caso do vírus Ébola, e que “caprichosamente” queira ir primeiro assistir a um desafio de futebol do seu clube num estádio repleto de incautos adeptos, antes de se deixar internar e de ser adequadamente isolado e tratado? Porquê persistir em fingir que estes cenários são apenas remotamente hipotéticos (quando o que se relata evidencia precisamente o contrário) ou que se deve antes recorrer às possíveis analogias da Lei de Saúde Mental (que permitem todas as variantes interpretativas) em vez de se ter a coragem de fazer uma Lei adequadamente específica para responder aos problemas que se enquadram nesta temática, no respeito óbvio pelos mais elementares direitos, mas não sem exigir o necessário cumprimento simultâneo dos correspondentes deveres?

Não façamos, pois, como satirizou Mikhail Bakunin (filósofo anarquista russo) ao exclamar “a liberdade alheia é a minha, mas sem limites”, mas antes como exclamou Edmund Burke (filósofo e político irlandês) “a liberdade também deve ser limitada a fim de ser possuída”.

Que os representantes da Ordem dos Médicos, os responsáveis políticos e demais cidadãos se sintam suficientemente motivados para saber iniciar a discussão que se impõe com prontidão, ponderação e coragem para responder adequadamente aos problemas que aqui levanto. Na minha perspetiva, não vale a pena fingir que nada de relevante se passa e que o atual enquadramento jurídico é suficiente para defender a Sociedade e os seus Cidadãos. As minhas propostas são as que aqui dou à estampa. Venham outras. Enquanto é tempo…”

Desta dissertação, escrita há cerca de quatro anos, é lógico concluir que defendo que se possa ter a possibilidade de internar compulsivamente alguns doentes em certas circunstâncias específicas, não só por terem patologia psiquiátrica, mas também por possuírem patologia infeciosa, desde que seja contagiosa, grave e transmissível por simples contato ou por via aérea, a terceiros indefesos.

Estes são, para mim, (alguns) dos verdadeiros problemas que importa saber enfrentar. Por tal, nunca foi tão necessário beber os ensinamentos da história, pois, como disse o Imperador francês Napoleão Bonaparte, “nada é mais difícil e por isso mais precioso do que ser capaz de decidir”. Mas bem, Sr.ª Ministra Marta Temido, acrescento eu.

Nota final: Escrevi este texto sem saber se sempre se confirmará aquilo que se anuncia ser a divulgação das próximas alterações ao Plano do Ministério da Saúde e da DGS. E, muito menos, o dia e hora a que serão divulgadas ou seu o eventual teor. Apenas impelido por uma mera questão de consciência, dado que, mesmo sem ter sido contactado, até agora, pelas autoridades de Saúde Pública, como seria suposto, ao assumir o estrito cumprimento das normas em vigor, senti-me profundamente revoltado por não ter podido ir hoje passar visita aos doentes da enfermaria do Serviço que dirijo no CHS, tal como de atender em consulta, quer no CHS, quer no meu consultório privado, os doentes que estavam agendados, porque, como é mais do que óbvio, não represento, presentemente, conforme já relatei, qualquer perigo para a saúde de terceiros.