A reprovação, na Assembleia da República, do Projeto de Lei 655/XIV/2, que “Procede à revogação do “big brother” fiscal revogando o Decreto-Lei n.º 48/2020, de 3 de agosto”, com votos contra do PS, PAN e abstenção do BE, merecendo voto favorável do PSD, PCP, CDS-PP e IL mantém em vigor a obrigação de envio1, a partir de 2022, dos dados relativos à contabilidade de todas as empresas do país, através de um ficheiro, previamente validado pela AT, que contém todos os movimentos contabilísticos de todas as empresas deste país, anualmente, à Autoridade Tributária e Aduaneira (ATA).

O que está em causa?

O que está verdadeiramente em causa não é o combate à fraude e evasão fiscal, porque nesse propósito estamos todos de acordo, e, para esse efeito, a ATA já tem suficiente informação entregue pelas empresas e pelos cidadãos para cumprir a sua missão. O que está em causa é a necessidade, ou não, de concentrar toda a informação económica e financeira das empresas deste país numa única base de dados, criando uma nova obrigação declarativa, sujeitando as empresas e os contabilistas a mais custos de contexto, mais pressão declarativa e com novas coimas, e o envio de mais informação e, afinal, para que efeito?

A intenção manifestada de “facilitar” o preenchimento do Anexo A2 (Prestação de contas) da Informação Empresarial Simplificado (IES), cuja obrigação anual está estabelecida desde 20083, é afinal um falso pretexto. Foi o próprio SEAAF, Dr. António Mendonça Mendes, que declarou na sua audição no Parlamento, em abril de 2021, que o envio desta informação permite a “futura discussão de um IRC simplificado assente na contabilidade”.

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Afinal a intenção não é facilitar o pré-preenchimento da IES, como anunciaram, mas obter informação que permita a implementação de um IRC baseado em indicadores económicos e financeiros, contrariando a tributação pelo lucro real, e eliminando o intermediário, os contabilistas. Mas esse método será melhor para as empresas? De certeza que não, até pelas experiências do passado.

Mais surpreendente ainda, é quando o SEAAF afirma que “o futuro será o reporte de dados em tempo real”?!. Será que os representantes das empresas e os cidadãos em geral estão conscientes dos riscos que surgem com este caminho?

O Estado pretende mais informação das empresas e dos cidadãos, mas está sucessivamente a adiar a implementação do sistema de normalização contabilística para a administração pública (SNC-AP), que traz maior transparência e rigor na prestação de contas do Estado para com os cidadãos. Porque será?

Que dados serão enviados?

Todos os movimentos contabilísticos das empresas, incluindo, por isso, dados bancários de clientes, de fornecedores, números de contribuinte, resultados, margens, descontos, datas de lançamento, quem produziu os lançamentos, tudo.

É importante recordar que a Provedoria de Justiça, no seu parecer acerca do tema, considerou que “os documentos fiscalmente relevantes e os elementos contabilísticos fiquem desde logo à guarda da AT (ainda que encriptados) pode, em último caso ser visto como um desvio à presunção de boa fé da atuação dos contribuintes, corolário do princípio da colaboração previsto no art. 59.º da Lei Geral Tributária”.

Afirmou ainda o Sr. SEAAF, na sua audição, que a AT, o INE e o BP só receberão números, porque os dados que contêm texto serão encriptados. Recorda-se, a esse propósito, que os lançamentos contabilísticos exigem, segundo regras impostas pela AT, a informação sobre os números de contribuinte, e como sabemos, a partir deste número pode ser obtida toda a informação de texto que lhes faltava.

Mais custos de contexto para as empresas

Para os contabilistas, o problema não está na origem e nas intenções originais do ficheiro e é até uma boa forma de normalizar a informação. O que é inaceitável está nas sucessivas alterações de normas e procedimentos, publicadas e outras não, desde então, que passaram a exigir requisitos que extravasam completamente o domínio fiscal, que se intrometem em aspetos de natureza contabilística, introduzindo custos de preparação da informação perfeitamente desnecessários.

Ao contrário do também afirmado pelo Sr. SEAAF, a CNC não teve um papel ativo, como lhe competia, neste assunto. Refere a CNC, no seu parecer, que “tanto a implementação da IES como a do SAF-T (PT) da Contabilidade para as entidades empresariais inicialmente foram desenvolvidas à margem da CNC, tendo sido realizadas reuniões pontuais do Grupo da IES com a CNC, quer na altura da implementação inicial da IES, quer em 2018 e 2019, no âmbito de alterações ao SAF-T da Contabilidade (Taxonomias)”.

A desmaterialização veio para ficar, mas os benefícios devem ser para todas as partes envolvidas e há fronteiras que não devem ser ultrapassadas, correndo-se o risco de nos virmos a arrepender no futuro, quando o mal for efetivamente provocado.

[1] Decreto-Lei n.º 48/2020, de 3 de agosto.

[2] Entidades residentes que exercem, a título principal, atividade comercial, industrial ou agrícola e entidades não residentes com estabelecimento estável.

[3] Decreto-Lei n.º 8/2007, de 17 de janeiro.