Por causa dos Campeonatos Mundiais de Atletismo, passei várias horas por dia, em nove dos últimos dez dias de Agosto, dentro do Estádio Olímpico de Pequim, enquanto almoçava pratos telentosamente confeccionados com todos os produtos que a marca Compal vende em latas e que são susceptíveis de serem misturados uns com os outros e com salsichas Nobre. Mo Farah e Usain Bolt são já velhos amigos e a gente mais ou menos conhecida que por lá apareceu também era óptima. E voltei a correr em grande forma todas as distâncias, convenientemente sentado no sofá, e a festejar várias vitórias com a efusividade apropriada às circunstâncias. Poucas coisas são tão comunicativas como a expressão de felicidade no rosto de um corredor que atravessa a meta em primeiro lugar, e é uma grande sorte podermos partilhar, à nossa maneira, a emoção de Mo Farah e dos outros. Eu gosto de futebol, mas, sob este ponto de vista, não se compara.

Nem tudo correu bem, é claro. Este ano, não sei porquê, a organização dos campeonatos decidiu incluir duas corridas de veteranos, entre os 50 e os 55 anos: 400 metros para as mulheres e 800 para os homens. A de 400, ganhou-a uma jovem inglesa de 50 anos, e a de 800 um jovem, também inglês, da mesma idade. Aos 55 anos, não precisava desta humilhação suplementar. De falsas boas ideias está o mundo cheio e não é preciso inventar mais. Além disso, houve – há sempre – aquela prova sumamente idiota da marcha. Ultrapassa largamente a minha capacidade de entendimento o prazer que se possa ter em observar um exercício que tão manifestamente vai contra a natureza humana. Se uma pessoa quer andar depressa, corre. Não anda ali a arrastar os pés como um imbecil masoquista. Não sou muito de assinar petições, mas se aparecer por aí uma a sugerir aos organismos competentes a eliminação desta prova dos campeonatos de atletismo e dos Jogos Olímpicos, não hesito por um só instante. Por acaso, se calhar até hesito e acabo por não assinar, em nome do direito à diferença ou uma coisa qualquer assim, mas fica aqui uma declaração de princípios prestes a não ser cumprida, como todas as boas declarações de princípios.

Além disso, houve, é claro, uma grande mágoa. Blanka Vlasic, que, desde pelo menos os seus dezasseis anos e os Jogos Olímpicos de Sidney em 2000, devia ganhar a medalha de ouro em todas as provas, dos cem metros à maratona, com os saltos todos pelo meio e os lançamentos e o heptatlo – e, já agora, o título mundial de xadrez -, ficou apenas com a prata no salto em altura. A russa que ganhou o ouro devia obviamente ter sido desqualificada – sem necessidade de razões técnicas nenhumas, embora com a maior simpatia. Comparado com Blanka Vlasic, o Fosbury Flop é um detalhe insignificante na história do salto em altura. Aconselho vivamente os incréus que vejam nessa coisa magnífica chamada Youtube um vídeo, “Blanka Vlasic 1.87 – 2.08”, que ilustra a sua progressão entre essas duas alturas. (E ela dança, meu Deus!) A quem não vierem as lágrimas aos olhos, o estatuto de ser humano definitivamente não convém. E estou a abusar da moderação, como raramente fiz. (Naturalmente que a pura e simples existência de Blanka Vlasic constitui um argumento suplementar contra a existência da prova da marcha.)

Esta feliz contemplação da grandeza humana não inibiu a actividade do espírito, que incluiu a leitura da carta em nove partes que António Costa dedicou aos eleitores indecisos. Seria ridículo esperar deste género de literatura um rigor impecável ou uma grande beleza literária, que obviamente não transparecem aqui, como não transpareceriam se o produto tivesse origem no PSD ou no CDS. Por mim, até acho que António Costa, ou quem lhe escreveu a prosa, se saiu razoavelmente bem. Mas há coisas que, tendo em conta a última passagem do PS pelo poder – desculpe-se, mas não há maneira de evitar essa lembrança funesta -, causam alguma inquietação.

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Rui Ramos já manifestou a justo título aqui no Observador a sua surpresa relativamente à referência às Índias e aos Brasis que há em nós – a habitual conversa da auto-estima, sob uma das suas piores formas – e ao enigma semântico da expressão “uma postura activa na Europa, sem sem submissão nem aventureirismos” (vá lá, escapámos a “proactiva”). Eu acrescentaria o uso e abuso de palavras mágicas, de sentido negativo e positivo. Do lado negativo, encontramos, é claro, a austeridade, a fatalidade, a inevitabilidade, a depressão, a descrença, a resignação e o radicalismo ultraliberal. Creio que são as expressões fundamentais. Do lado positivo, o conhecimento, a inovação, a esperança, a auto-estima, a proactividade e a não-resignação. Há muitas mais, é claro, mas estas são talvez as mais importantes.

Longe de mim pretender que este pensamento dicotómico simplista é propriedade exclusiva do PS. Mas há de facto passagens que colocam problemas. Dois exemplos, colhidos da série das “palavras boas”.

Em primeiro lugar, a “não-resignação”. António Costa – sem particular originalidade, honra lhe seja feita – utiliza várias vezes a palavra “resignação” e afirma que, no que lhe diz respeito, não se resigna. Não se resigna, por exemplo, ao desemprego (como fatalidade), nem à austeridade (como necessidade). Essa não-resignação sua contrasta fortemente com o sentimento que ele próprio afirma ser, nos dias de hoje, colectivamente partilhado pelos portugueses, que se encontram, diz-nos, resignados, deprimidos e descrentes. Pessoalmente, não creio que o retrato se aplique assim tão perfeitamente à maioria dos portugueses. Mas o problema não está aí.

O problema está em que António Costa não se parece dar conta que esse forte estado de alma, a não-resignação, pelo qual se encontra virilmente afectado, não passa disso mesmo, de um estado de alma, o estado de alma de alguém que quer acordar os portugueses quando eles já estão, bem ou mal, acordados. Ou melhor: o problema está em que António Costa parece crer que do puro exercício da vontade – da não-resignação – magicamente surgirá, em virtude da omnipotência do pensamento, uma transformação do real. Volto à minha: António Costa não faz mais do que repetir, sem originalidade, um tópico recorrente do discurso político. Mas o ser recorrente não o enobrece por aí além. E, no presente contexto, inspira pouca confiança.

Tomemos agora o exemplo da “inovação”. É uma palavra que aparece vezes sem conta sob a pena de António Costa, sinal de que é nela que deposita grande parte das esperanças para melhorar grandemente a nossa situação. Ora, é de admitir que a inovação possa, de uma maneira ou de outra, ser fomentada. Dando, por exemplo, mais liberdade, e, em certos casos, mais dinheiro, às pessoas. Mas essas condições não garantem nada. Porque a inovação é, por definição, largamente imprevisível. Se fosse previsível, não seria inovação. O novo não brota de qualquer espécie de necessidade burocraticamente criada. A insistência na inovação (volto a repetir: “inovação” surge tantas vezes na prosa de António Costa que mais parece um mantra – se a inovação surgisse naturalmente da repetição…) é um bom exemplo do valor mágico atribuído às palavras. E as confianças místicas não auguram normalmente nada de bom para o futuro.

O problema da crença política nas palavras mágicas é que ela é uma espécie de análogo a um retorno a um estado pré-Fosbury no salto em altura, quando se utilizava a chamada técnica da “tesoura”, em qualquer das suas variantes: saltando de frente e lançando uma perna, e depois a outra, por cima da fasquia. Serviu até Dick Fosbury. Agora não. Acreditar nas palavras mágicas é acreditar que, passando a primeira perna (a perna das palavras), tudo se encontra já garantido. Ora, não é bem assim. Hoje em dia, o mais provável, seguindo este método, é cairmos em cima da fasquia (da austeridade). E ainda acabamos por, desclassificados dos saltos, voltar à marcha, em que nos andamos a exercitar, com prejuízo das solas dos sapatos, desde 2011, e de que, pouco a pouco, nos vamos livrando um bocadinho. Os portugueses não agradeceriam isso a António Costa.

PS. Foi-me feita, por dois leitores do Observador, Jorge Condinho e Paulo Alves, uma correcção inteiramente justa, que agradeço, ao meu artigo da passada quinta-feira sobre o Livro de Job. Ao contrário do que escrevi, não é Deus que destrói todos os bens de Job e, depois, lhe inflige a lepra maligna: é Satanás, autorizado por Deus. Mas, e espero que isto não pareça uma qualquer maneira de me desculpar do erro, isso não tem consequências danosas para o que eu queria dizer no artigo, e que se colocava, na medida do possível, fora de qualquer contexto teológico.