Não, não é gralha: eu sei que o nome da lendária figura bíblica, seduzida e derrotada por Dalila, é Sansão e que sanção, segundo o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, não é nenhum nome próprio, mas uma “medida repressiva infligida por uma autoridade para condenar um acto”. Mas também sei que Portugal, quando esteve na iminência de ser exemplarmente castigado pelas autoridades europeias, viveu uma das mais trágicas comédias da sua história contemporânea. A tempestade já passou e, felizmente, tudo não foi além de um grande susto, mas o espectro dessa ameaça perdura na lembrança de todos, bem como nos cartazes que ainda expressam a indignação patriótica pela eventualidade do castigo, que só in extremis a diplomacia portuguesa conseguiu evitar.

Ultrapassado o incidente, é hora de retirar algumas ilações éticas do acontecimento, não já sob a nociva influência das paixões, mas por via de uma mais serena ponderação da razão, até porque é possível, mas não desejável, que a situação se repita, num futuro mais ou menos próximo.

Em primeiro lugar, tudo leva a crer que as instâncias europeias, agindo de forma hesitante quanto à aplicação, ou não, de coimas a Portugal, fomentaram um clima de grande insegurança. O princípio da legalidade exige regras claras, porque questões desta natureza não podem ser deixadas à arbitrariedade dos políticos ou, pior ainda, dos tecnocratas de turno. Se são as instituições europeias que hesitam, na interpretação ou na aplicação das suas próprias normas, privilegiando, por exemplo, os Estados mais fortes, é a União Europeia que perde credibilidade e fomenta a indignação dos países discriminados, que os partidos extremistas da direita e da esquerda capitalizam em seu proveito.

Para bem do ideal europeu – que, para alguns dos fundadores da União, é essencialmente cristão – a aplicação das normas comunitárias não pode ficar à mercê de contingências ou de compadrios, como foi, ao que parece, o que aconteceu. Quem não se lembra da novela?! Um dia, era o Presidente francês que intercedia pelos coitadinhos dos portugueses; depois, um ministro alemão arreganhava os dentes contra os governantes lusos; mais tarde, reagia o melindrado governo, com voz grossa, retaliando com o eventual recurso às instâncias judiciais; para acabar tudo numa paradoxal e paternalista sugestão de ‘sanção zero’ …

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Embora não tenha nenhuma afinidade partidária, como exige a minha condição sacerdotal, confesso que, como qualquer outro cidadão português, muito me incomodou essa humilhação nacional. Mas também me desagradou o culto da irresponsabilidade pelos que, reconhecendo o incumprimento das metas orçamentais, pretenderam depois, de forma muito portuguesinha, que se desse um “jeito”, que se tivesse uma “atençãozinha” e não se levasse a mal o despiste financeiro…

Alguém disse que, a par da gigantesca estátua da liberdade, em Nova Iorque, dever-se-ia erguer uma não menor estátua à responsabilidade, porque uma liberdade não responsável de nada vale. Em Portugal, há uma ancestral cultura de irresponsabilidade política, talvez porque se pensa que as eleições são suficientes para punir quem não merece ser reeleito, apesar de o processo eleitoral beneficiar, por vezes, os mais espertos que, por desgraça, nem sempre são os mais honestos, nem os mais competentes…

Se um qualquer autarca endivida o município com a construção de uma piscina olímpica, num lugarejo onde apenas vivem três jovens de mais de oitenta anos, é certo e sabido que fica impune e, se calhar, até ganha a reeleição, à conta da ‘obra feita’… Umas pontes ou estradas derrapam para o dobro do custo orçamentado? Não importa, porque de certeza que ninguém será responsabilizado. Uns membros do governo viajam à borla, a convite de empresas sob a sua alçada, comprometendo assim a sua isenção e acção governativa?! Não há crise: nem eles se demitem, nem ninguém os demite e, uns meses depois, já ninguém fala do assunto e fica tudo na mesma…

A pérfida Dalila foi a desgraça de Sansão porque, depois de o ter seduzido com os seus encantos femininos, cortou-lhe as tranças, que eram a razão da sua descomunal força. A Dalila que enfraquece a nossa democracia e a União Europeia tem um nome: irresponsabilidade.

Mesmo que, segundo a normativa comunitária, fosse justa a sanção ao nosso país, teria sido certamente lamentável porque, mais uma vez, iria sobrecarregar os que mais sofreram com a austeridade. Mas a questão que, novamente, ficou sem resposta, foi a de saber de quem foi a responsabilidade por ter havido um défice excessivo. Seria uma pena que, apesar do susto, nada se tivesse aprendido e a culpa política, em Portugal, de novo morresse solteira.