Dinheiro e saúde têm sido passaportes para a felicidade. Os “boletins de vacinas” nunca nos incomodaram e dinheiro na carteira sempre foi sinónimo de liberdade. No entanto, existem hoje certificados e moedas digitais que podem ser “carimbados” de outras formas.

As decisões políticas influenciam a saúde e a economia, mas, apenas nos regimes ditatoriais essa influência tem sido exercida de forma individualizada. Não estamos habituados a isso. Na era industrial, para controlar as pessoas eram necessárias muitas outras pessoas, e só os aparelhos altamente burocratizados dos regimes socialistas conseguiam fazê-lo. Por exemplo, para escutar as conversas telefónicas de uma cidade era necessária toda uma legião de funcionários administrativos. Na era digital, basta premir uma tecla para conseguir isso e muito mais.

O cruzamento de informações sobre os cidadãos tornou-se demasiado fácil, pelo que, a defesa da privacidade é a única forma de manter a liberdade.

Tenha ou não esta pandemia surgido de forma fortuita, a verdade é que a saúde é o tubo de ensaio perfeito para testar os limites da tolerância das pessoas à falta de liberdade. Por exemplo, os certificados digitais de vacinação do “novo normal” são muito diferentes do tradicional boletim de vacinas, sendo que na peugada da saúde vem o dinheiro. Pode dizer-se que os certificados digitais de vacinação estão para o boletim de vacinas, tal como as moedas digitais dos bancos centrais (CBDC) estão para o dinheiro. As moedas digitais centralizadas poderão, com toda a facilidade, municiar um sistema de informações para controlar a vida dos cidadãos. Enquanto os certificados digitais de vacinação permitem aferir a distribuição de vacinas e atribuir, de 6 em 6 meses, novos graus de liberdade aos cidadãos, as CBDC, caso se queira, permitirão vistoriar o comportamento das pessoas a todo o momento. Afinal, todos somos consumidores e as pessoas precisam de dinheiro com muito mais frequência do que de vacinas…

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Entretanto, justificando o ditado “para grandes males grandes remédios”, a evolução tecnológica criou uma surpreendente “imunidade digital individual” ao garantir a privacidade de dados considerados sensíveis sem sacrificar a possibilidade de os respetivos proprietários efetuarem publicamente transações que envolvem esses mesmos dados, assegurando, assim, a conveniência de todos os interessados. Esta tecnologia chama-se “blockchain” e é tão poderosa que se traduz num “pau de dois bicos” para a democracia.

Passou a ser possível confiar automaticamente nos dados transacionados em rede, o que dispensa verificações efetuadas por terceiros. Como o valor do dinheiro se baseia na confiança por ele suscitada, a nova possibilidade de confiar a 100% nos dados transacionados em redes informáticas veio permitir criar moedas digitais inteiramente programáveis. Ora, esta alteração no principal sistema de incentivos da humanidade é tão promissora quanto preocupante.

Por enquanto, a programação das moedas digitais tem vindo a desenrolar-se em redes descentralizadas e transparentes que distribuem a referida confiança pelos seus membros. Existem já mais de dez mil criptomoedas emanadas da sociedade civil e em livre concorrência no mercado. No entanto, infelizmente para quem preza a liberdade, a miopia política pode decretar a respectiva proibição e “entregar o ouro ao bandido”.

A verdade é que esta confiança digital obtida sem intermediários (prenunciando o fim da separação de poderes que tem protegido a democracia) começou a ser utilizada por governos apressados em criar as suas próprias moedas digitais centralizadas. Sem reticências em utilizar este novo poder digital para controlar os seus cidadãos, a China partiu da pole position e já distribuiu milhões de “yuan digital” à população. Por cá, a classe política nem sequer iniciou os treinos. Estarão à espera de que nos tratem da saúde ou na esperança de que tais moedas sirvam apenas para obter descontos preferenciais na eletricidade…?