Quando falamos de saúde, temos como referência a conceptualização da OMS, que, embora possamos dizer que é utópica – ao apontar como objetivo o bem estar das pessoas – engloba uma visão global do ser humano. Valoriza aspetos como condições de vida, mas também ambições, expectativas, consciência social e dignidade humana.

Somos seres livres que vivemos com dispositivos biológicos numa existência mediada de ligações morais, éticas e emocionais com os outros. Esta perspetiva não reduz a noção de saúde à ausência de perturbações fisiopatológicas, mas introduz uma perspetiva dinâmica e mobilizadora, na procura de caminhos para o ser feliz e sentir o bem estar.

Ao referimos a saúde mental, também não nos focalizamos somente nas estruturas cerebrais e nas funções de autorregulação que desempenham, mas igualmente no viver do homem que interage num contexto socioeconómico e emocional determinado. Nesta visão, o sofrimento e a saúde mental não se esgotam num organicismo redutor, o que obriga a psiquiatria a reconstruir o seu campus epistemológico, de modo a salvaguardar um mínimo ético que incorpore o “saber fazer “e o bem-estar do doente.

A doença mental não é uma entidade misteriosa. É passível de ser diagnosticada (identificada) e tratada, permitindo à pessoa reagir e superar o estado mórbido.

Os recentes progressos científicos das neurociências vêm clarificar as capacidades e funções do cérebro humano. Tem sido um caminho difícil, esse de descodificar um órgão tão complexo, feito de biliões de neurónios e incontáveis conexões entre eles. É nesta estrutura que se desenvolvem em cada um nós competências e capacidades nas várias áreas do saber, das artes à engenharia, e também a emocionalidade, a sensibilidade, o sentido crítico e outras faculdades mentais em que essas mesmas estruturas neuronais são importantes.

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A verdade é que a investigação e a clínica exigem rigor conceptual, de forma a que se encontrem critérios de diferenciação das diversas perturbações mentais. Tudo isto porque é complexo definir doença mental e também por estarem em causa funções mentais superiores como crenças, emoções, desejos, motivações ou afetos.

Provavelmente será preferível falarmos de afeção, porque nesta área do saber médico temos que acentuar a distinção entre a doença e o sujeito portador. Esta metodologia é determinante no processo de estigmatização, na medida em que se faz a diferenciação entre a doença e a pessoa doente. Nesta fase da civilização é importante não contribuirmos para a exclusão da doença mental e das populações atingidas.

Na verdade, o cidadão tem uma doença psiquiátrica como pode ter uma do foro físico, sendo que nas duas condições pode melhorar ou curar-se. Os portadores de distúrbios mentais são, antes de mais, seres humanos que vivenciam a sua doença, sofrendo consequências psicológicas e sociológica dessa circunstância.

A psiquiatria atual tem que ter também em atenção a qualidade de vida dos que padecem de sofrimento psiquiátrico, com intervenções preventivas na comunidade, debatendo os principais problemas das sociedades modernas, a natureza e dinâmica dos postulados sociais e filosóficos da vida e a interação do meio ambiente com o comportamento individual e coletivo. É igualmente urgente fomentar os aspetos reabilitativos, por ser o caminho para se atingir a recuperação social, profissional e a autonomia pessoal. No fundo, a dignificação humana das suas vidas.

A recente lei sobre a Saúde Mental vem consagrar todos os aspetos reabilitativos e a defesa dos direitos humanos das pessoas com patologia psiquiátrica. A diminuição da institucionalização, a proximidade dos cuidados, bem como a prevenção nos grupos mais vulneráveis são estratégias tendentes a melhorar as vivências e o bem-estar da população e ajudar na diminuição dos fatores estigmatizantes.

Sendo a autonomia pessoal um valor em si mesmo, ela tem que ser protegida e respeitada, mesmo nas situações em que, por doença, há uma deterioração social, mental e profissional. Nestes casos que serão muito reduzidos, temos hoje na lei um normativo que visa a garantia de um tratamento adequado de modo a restabelecer a saúde. Também os preceitos éticos impõem aos profissionais combater o sofrimento e promover a autonomia e dignidade da pessoa.

Neste sentido, a direção do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos vem defendendo estes princípios num posicionamento moderno da Psiquiatria na sociedade atual, relevando todos os fatores que facilitem a ressocialização e combatendo as práticas estigmatizantes.

Ao promovermos a saúde mental estamos a pugnar pela liberdade do cidadão, por um quotidiano de respeito pela pessoa, ambiente e cultura. Resumindo: por um novo estilo de vida em que haja um acentuar da humanização dos espaços públicos.

António Reis Marques, psiquiatra, foi membro do Conselho Estratégico do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra e editor e chefe de redação da revista Psiquiatria Clínica. Foi também presidente da direção da Seçção Regional Centro da Ordem dos Médicos, instituição onde desempenha atualmente o cargo de Presidente do Colégio de Psiquiatria.

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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