Foi noticiado que uma empresa californiana está a desenvolver um estimulador cerebral que, espera-se que num futuro próximo, permitirá transferir conhecimento diretamente para o cérebro, rapidamente e sem esforço. Tentemos imaginar o que aconteceria, em Portugal, quando fosse possível aprender, através desse estimulador, tudo o que houvesse então para se saber sobre teoria financeira, alemão, mecânica quântica, pastelaria, direito penal, engenharia civil, cardiologia ou outra área de conhecimento, quase instantaneamente e por um preço módico, pelo custo de uma imperial por exemplo.

Será que o governo deveria permitir a importação desse estimulador cerebral? Seria de esperar que sim. Esta geringonça traria benefícios inestimáveis para quase todos os portugueses, a começar pelos estudantes: em vez de doze anos empatados no ensino unificado, algumas horas deste estimulador permitir-lhes-iam aprender a ler e escrever, aritmética e cálculo, meia dúzia de línguas estrangeiras para além de história, ciências, filosofia e tudo o mais; todo o conhecimento de uma licenciatura obter-se-ia numa manhã, o de um mestrado numa tarde; e o insucesso escolar extinguir-se-ia como o rinoceronte branco. Os pais também beneficiariam, quanto mais não fosse pela enorme redução nas despesas escolares. E as finanças públicas? Essas veriam um corte imediato na despesa de cerca de 4% do PIB nacional, ao que se haveria de acrescentar a enorme soma que o Estado obteria através da alienação do valioso imobiliário devoluto de centenas escolas e dezenas de campus universitários que, entretanto, se tornariam inúteis.

Não é claro, no entanto, o que os jovens fariam com todo o tempo adicional que assim adquiririam. Será que entrariam um “período de reflexão” sobre os conhecimentos adquiridos quase que instantaneamente? Período que seria orientado por quem? Por professores sem experiência extra académica ou por profissionais da área? Ou será que iniciariam, médicos e advogados, o estágio profissional aos 10 ou aos 8 anos? Seria necessário alterar a legislação limitadora do trabalho infantil, ou será que um longo período de espera pelo primeiro emprego, por crianças ultra-qualificadas, as infantilizaria permanentemente?

Certamente que graus académicos como licenciaturas e mestrados perderiam a sua atual função social, sendo substituídos por certificados de estimulação cerebral nisto ou naquilo.  Por outro lado, a investigação científica receberia um enorme estímulo, aumentando em quase vinte anos a vida produtiva de um investigador, exatamente naquelas faixas etárias em que a sua criatividade e produtividade são maiores. Mas também a formação, requalificação e atualização profissionais seriam revolucionadas com este aparelho. De igual modo, a frustração que algumas pessoas sentem, quando atingem a meia-idade, com a sua carreira, se poderia resolver facilmente: “Está cansado de ser piloto? Torne-se atuário ou notário esta tarde!”

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Poder-se-ia esperar que a introdução desta maquineta originasse transformações sociais mais radicais que as da revolução francesa. Pela primeira vez na história da humanidade seria possível uma quase igualdade entre ricos e pobres, jovens e adultos e velhos, homens e mulheres no acesso ao conhecimento. Que impacto nas relações sociais tal não teria? Pode-se esperar que produtividade marginal do trabalho aumentasse substancialmente, e com ela a remuneração salarial, o que induziria a uma igualdade na abundância que nenhuma combinação de políticas fiscais e distributivas conseguiria atingir.

No entanto é possível que esta inovação tecnológica não deixasse todos melhor. Dois ministros, vários secretários de estado, e inúmeros burocratas teriam de ir fazer outra coisa com a vida. Veneráveis instituições académicas perderiam a razão de ser, e milhares de professores veriam o seu posto de trabalho extinguir-se, e com ele uma importante fonte de rendimento pessoal, autoestima e respeito social. Sim, é verdade que que o estimulador cerebral lhes permitiria uma requalificação profissional rápida, fácil e barata, mas para todos aqueles que o ensino é uma vocação, a perda pessoal seria incalculável e irreparável.

O que levanta a questão: mesmo tendo em conta os enormes benefícios para o grosso da população, face aos danos expectáveis que um importante segmento profissional irá sofrer, não seria de defender os direitos adquiridos dos professores e proibir a utilização do estimulador cerebral em território nacional? Não é difícil conceber a Fenprof ir para a rua, ou o Conselho de Reitores movimentar-se nos gabinetes, a defender esta “solução”.

Evidentemente que resposta é: não! E o argumento mais fraco contra a proibição, é que esta seria fútil: um saltinho a Badajoz ou Vigo, a Londres ou Paris, permitiria a qualquer um aceder a um estimulador cerebral. O argumento ético, de que um grupo profissional não tem o direito de impor um dano, ou impedir uma vantagem, a todo um povo, é bem mais importante. À objeção de que é preciso proteger todo o investimento feito na formação de professores em infraestruturas educacionais, que seria tornado inútil por esta nova tecnologia, poder-se-ia responder que na boa prática financeira custos passados são irrelevantes em decisões a tomar no presente, que devem depender unicamente do que é expectável para o futuro.

Mas o argumento mais importante é que uma inovação destas, ao aumentar o stock de capital humano de cada um de nós e de toda a sociedade, nos tornaria a todos mais ricos. Todos, incluindo os professores? Sim, incluindo os professores. Aqueles 4% do PIB, mais que dariam para compensar (se fosse necessário) todos os professores e burocratas pela perda dos seus rendimentos, e ainda sobraria muito para se fazerem outras coisas. E isto ainda sem ter em conta o aumento de produtividade e rendimento em todos os outros setores da economia. Que coisas se poderiam fazer? Amortizar a dívida pública poderia ser uma. As outras são uma caixinha de surpresas que só o futuro nos revelará. Tal como os ferreiros e carvoeiros do século 19 desconheciam que profissões substituiriam as suas no século 20, assim é impossível prever hoje que profissões substituirão no século 22 os professores e reitores do século 21. Certo, certo é que nenhum miúdo hoje sonha em ser ferreiro.

Igualmente certo é que a criação destrutiva de Schumpeter está viva, nesta e em milhares de outras inovações tecnológicas e organizacionais, mas a luta de classes de Marx, essa já morreu. Quando é que a enterram?

Professor de Finanças, AESE Business School