Há muito que os perigos do ski estão bem identificados. Sejam os brutais acidentes, como o que vitimou Michael Schumacher, seja o bronzeado ridículo com que as pessoas se apresentam em Fevereiro, com marcas brancas iguais às que Donald Trump tem depois de uma sessão de solário, uma espécie de guaxinim cor-de-laranja. Mas agora, a propósito da epidemia que nos assola, descobriu-se que o convívio à volta do tradicional método nórdico de deslocação na neve também acarreta perigos para a saúde pública.

Parece que um dos grandes focos de contágio na Europa foi a estância de ski de Ischgl, na Áustria, onde foram infectadas centenas de pessoas de vários países, que depois levaram o vírus para suas casas. Não sei qual é a surpresa. Basta ver o nome do sítio: Ischgl. Parece um espirro. Não me surpreenderia se Ischgl fosse no Vale de Atchm, próximo do pico alpino de Cfcof. Pelo sim, pelo não, nesta fase da pandemia, “Ischgl” devia ser proferido sempre para o cotovelo. Aposto que houve gente a apanhar Covid só a pedir indicações na estrada. “Boa tarde, sabe dizer-me se este é o caminho para a estância?”, pergunta o turista. “Sim, são só mais 4km e chega a Ischgl”. Pumba!, gotículas cheiinhas de coronavírus que o aldeão tirolês borrifa para a cara do turista alemão. Os alemães foram dos mais infectados e Ischgl é mesmo considerada a porta de entrada do vírus na Alemanha. Ou seja, é um novo capítulo da aborrecida tradição de austríacos introduzirem bodega na Alemanha, que depois a dissemina.

Ao que tudo indica, um empregado de um dos bares mais populares da estância adoeceu em Fevereiro e continuou a trabalhar, tendo contagiado dezenas de clientes até as autoridades fecharem o bar a 10 de Março. O bar chama-se Kitzloch. Exacto. O Kitzloch em Ischgl. Imaginem a quantidade de perdigotos expelidos ao pedir um copo de Blaufrankisch tinto no Kitzloch em Ischgl, para acompanhar um Powidtascherl de ameixa. Disse-o agora em voz alta e tive de limpar o ecrã. Se continuar a escrever sobre a Áustria, tenho de instalar um limpa pára-brisas. As línguas germânicas são, de facto, propensas à disseminação de doenças. Se calhar é boa ideia os falantes de alemão ficarem calados até se encontrar uma vacina para a Covid.

Talvez agora as pessoas se convençam da parvoíce que é viajar para fazer ski. Todos os anos, milhares de europeus de classe média-alta deslocam-se até pequenas vilas serranas e pagam fortunas para, durante uma semana, viverem o dia-a-dia de um membro do proletariado alpino. Instalam-se em apartamentos bem mais pequenos do que as suas casas, com mais gente do que aquela com quem habitualmente vivem e passam o dia em actividade física repetitiva e desconfortável, com o objectivo de relaxarem.

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Acordam ainda de madrugada, enfiam-se em fatos-macaco, põem 20 kgs de equipamento às costas e saem para o frio. Apanham um transporte público colectivo apinhado, sobem a ladeira, calçam uma espécie de tábuas e descem desequilibradamente a ladeira. Não por se terem esquecido de alguma coisa lá em baixo, mas por ser isso que é suposto fazer. Sobem novamente a ladeira e voltam a descer a ladeira. E assim sucessivamente, ao vento, às vezes de rabo, até decidirem que já chega e que é hora de se enfiarem, todos suados e amassados, a beber schnapps numa tasca lotada, como o Ischgl. Nestas condições insalubres, a sorte é só apanharem Covid.

Percebe-se que gente que vive em montanhas com neve use skis para se deslocar. Não se compreende tão bem como é que gente da planície acha que isso é uma ideia gira para férias. É o mesmo que montanheses da Europa Central viajarem para Lisboa para se enfiaram num T1 na Ajuda durante uma semana, acordarem ainda de noite, vestirem um fato-de-treino, calçarem ténis – um tipo de sapatos que normalmente nunca usam –, apanharem o autocarro para Campo de Ourique, descerem a correr até Alcântara, voltarem a apanhar o autocarro, voltarem a descer, voltarem a apanhar o autocarro, voltarem a descer, voltarem a apanhar o autocarro, voltarem a descer, e no fim juntarem-se numa taberna para beber vinho. No fundo, o percurso diário de um toxicodependente lisboeta nos anos 90, quando o Casal Ventoso fornecia a droga à cidade.

De todas as actividades bizarras que ajudaram à propagação do coronavírus, a ingestão de pangolim não é a mais estranha. A não ser, claro, que a iguaria seja servida no Kitzloch em Ischgl. Santinho.