Sempre tomei a “ordem natural das coisas” com uma regra óbvia, tal era a resignação com que sempre me falavam dela. É verdade que a fui escutando a propósito de quem morria. Como se os mais velhos morressem primeiro e os pais nunca falecessem depois dos filhos. Como se os maus fossem mais facilmente castigados que os bons. Ou os patifes nunca ganhassem aos justos. Cresci com a ordem natural das coisas. E, talvez por isso, nunca a questionei por aí além. Talvez porque ela me sugerisse uma lei, mais ou menos universal. Ancorada na justiça, todavia. Talvez por isso, mais ou menos inquestionável. Com um certo fundamento da biologia. Como se a vida tivesse a sua ciência. E, ao pé dela, fôssemos demasiados insignificantes; pequeninos; quase minúsculos, para a questionar. Ou, sequer, para nos insurgirmos em relação a ela.

É claro que quando a ordem natural das coisas choca de frente connosco somos, rapidamente, levados a perguntar sobre a sua justiça. Sobretudo quando perdemos alguém que é muito precioso para nós. À luz duma versão mais íntima da ordem natural das coisas, as pessoas só deviam morrer depois de se tornarem prescindíveis para nós. Depois de terem morrido, aos bocadinhos, dentro de nós. E nunca antes. De supetão. Como quando somos apanhados de surpresa. E arrancados ao nosso amor por elas. Como se amar não fosse o “quanto baste” para que as pessoas de quem precisamos insistissem em estar vivas. Só por nós! Só (mesmo) para nós!

Mas quando nos morre um filho, a ordem natural das coisas torna-se, no mínimo, absurda.  Mesmo obscena! Porque as crianças não morrem. Aos olhos dos pais, os filhos não podem morrer! Porque eles são a razão para que os pais estejam vivos. Porque mal eles tomam as parecenças um bocadinho como suas, fazem dos filhos o quanto baste para a sua eternidade. Porque eles lhes dão um sentido para a vida. Porque lhes dão amor, colo, mimos e meiguices como, muito provavelmente, mais ninguém lhes dá. Porque os resgatam para o sorriso, para a fantasia e para a brincadeira. Porque apanham ideias, frases e pequenos-nada “do ar”, e os deslumbram pela forma como pensam e os resgatam para o espanto. Porque lhes dão felicidade. E ligam pontas e dão fio às meadas. Porque lhes põem problemas e, com isso, os obrigam a crescer. Porque os abrigam de tudo o que é supérfluo e não tem sentido e os intoxica e corrói, devagarinho.

Como se pode aceitar, então, que um filho morra, devagar ou de rompante? Não pode. Nunca! Como se pode entender que a pessoa com quem se divida um filho viva o sofrimento à sua velocidade e não compartilhe a sua dor, as ideias pavorosas que ela lhe traz ou, mesmo, a culpa por ele ter morrido (seja ela qual for), ou o sentimento da vida ter terminado (por mais que ela insista e insista e se insinue e faça força para existir)? Não pode! Como se pode aceitar que Deus tenha tirado férias nesse momento e tenha deixado uma criança à sua sorte, a ser consumido pelo mais absurdo dos azares? Não pode! Como se pode reconhecer, entre todas as as falhas de todas as pessoas que eram essenciais para nós, que ninguém pareça discernir o quanto a nossa dor nos mata, e nos deixa a morrer, e ninguém parece acertar numa palavra que seja sobre tudo o que sentimos diante da morte de um filho, fazendo de cada agora a hora da nossa morte? Não pode! E quantas pessoas sobrevivem, dentro de nós, à sua perda – sem contar connosco, que morremos com ele – depois de fazermos contas a tudo o que ela nos levou? Nenhumas. Quase nenhumas. (Mas que diferença faz?…) E como se pode regressar à rua, às pessoas ou ao trabalho no meio de escombros, e viver de forma pacífica e compreensiva a curiosidade pela extensão da nossa dor, a vergonha por não termos sido capazes de guardar quem nos era mais precioso (por mais que ninguém nos tenha guardado disso), ou o ódio (quando sentimos que os maus, os injustos e todos os outros nos demonstram que a ordem natural das coisas é um embuste)? Não pode!

Daí que se entenda a petição que a Acreditar lançou e que propõe o alargamento da licença pela perda de um filho de cinco para vinte dias. Não que mais quinze dias ajudem a “cicatrizar” melhor uma dor já de si enlouquecedora. Que ficará como dor para sempre! Não que com esses dias as pessoas com quem trabalhamos ganhem rasgos de humanidade e com eles entendam melhor o nosso sofrimento. E não que com isso a solidão fique mais abrigada e quem perde um filho se sinta com cabeça para empreender, para criar ou para realizar seja o que for. Sentirá, quando muito, que a sua dor é levada mais a sério. Com mais carinho. Com aconchego.

É por isso que uma petição como esta devia merecer a unanimidade de todos nós. Sobretudo se com isso se legitimar melhor o direito à indignação que a perda dum filho, para sempre, e sem reparação possível, nos merece.

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