Não obstante a História do século XX já ter mais do que provado, que as tentativas de construção de regimes de extrema-direita e de extrema-esquerda custaram sofrimentos e a vida a centenas de milhões de pessoas, alguns pensadores não param de apregoar que os fracassos passados foram excepção à regra e insistem em que se deve tentar realizar novas experiências, que, desta vez, prometem “correr bem”.

Peço encarecidamente a esses pensadores que, se quiserem tentar, o façam só e apenas em suas casas e nos seus quintais, e deixem os vizinhos optar pela forma como desejam viver.

A aliança entre o PSD e o Chega nos Açores, que, para que fique bem claro, me parece um erro de palmatória, volta a trazer ao palco a questão da moralidade de alianças entre partidos democráticos e forças extremistas. Pois bem, se o Partido Socialista tem direito a negociar com partidos de extrema-esquerda, porque é que o PSD não tem o direito de fazer o mesmo com o Chega? Tanto mais que a existência legal de partidos de extrema-direita e de extrema-esquerda se deve a decisões do Tribunal Constitucional.

Pergunta-se: em que é que são melhores, mais humanistas, os princípios ideológicos do PCTP/MRPP e de outros grupelhos semelhantes, em comparação com os princípios do Chega?

Os casos do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista Português, partidos também de extrema-esquerda, merecem uma análise à parte, pois um dos objectivos da onda de ataques contra o Chega – partido xenófobo e racista, cuja presença na nossa vida, tal como a presença do BE e do PCP, é um sinal de que o sistema político português está enfermo, para não dizer podre –consiste em branquear essa mesma extrema-direita.

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Gabriel Leite Mota, economista, doutorado em Economia da Felicidade, escreve no Jornal Económico: “Estes movimentos da extrema-direita populista caracterizam-se por escolher alguns problemas específicos da sociedade onde operam, prometendo soluções fáceis, milagrosas, para questões muito complexas.” Concordo, mas haverá diferença se substituirmos os “movimentos da extrema-direita” por movimentos da extrema-esquerda” naquela frase. O que fazem o PCP e o BE? Não nos propõem soluções milagrosas. Onde estaríamos se tivéssemos um Governo que realizasse, por exemplo, o programa de nacionalizações propostos por esses partidos?

O especialista em Economia da Felicidade justifica, assim, as diferenças radicais entre os dois extremos: “O discurso que hoje os partidos da extrema-direita populista usam, demonizando os islâmicos, os ciganos, os homossexuais, os comunistas, os imigrantes, os progressistas, os ateus, os africanos, ou até a ordem económica mundial, são um claro decalque do que fizeram os fascistas e os nazistas. Só falta o espezinhamento dos judeus. E é aqui que se traça uma fronteira intransponível ao nível de comparações ideológicas entre extrema-direita e comunismo. É que a extrema-direita é, ideologicamente, segregacionista, supremacista, racista, não humanista e antidemocrática. O comunismo é caminhar para uma sociedade onde cada um contribua consoante as suas possibilidades e usufrua consoante as suas necessidades. É um humanismo puro (em muito cristão, até).”

Quanto aos erros e crimes da extrema-direita estamos de acordo, mas na defesa do comunismo o autor utiliza argumentos que já nem o Menino Jesus enganam. O comunismo, afinal, é pureza e, imaginem, até santidade.

Para este académico, “basta ter um mínimo de leitura de Marx para se perceber que o comunismo só pode acontecer após uma profunda maturação do capitalismo a nível mundial, algo que ainda hoje não aconteceu… Existiu Estalinismo, Maoismo, Pol Potismo, Castrismo ou Ceausesquismo. Mas não, ainda, comunismo”.

E onde está o Leninismo, está do lado do “Santo” Marx, que o autor do artigo venera, ou do lado dos “desvios”? E quem desenvolveu e concretizou na prática o conceito de “ditadura do proletariado”? Não foi a “santíssima trindade”, Marx, Engels e Lenine?”

O marxismo transporta em si princípios tão cruéis e desumanos como o fascismo ou o nazismo, ou será que existem “ditaduras boas”? O que fez Lenine com a tese marxista de que “a religião é o ópio do povo”? Não me venham dizer que ele, ao exterminar as religiões cristã, muçulmana, hebraica, budista, tentou pôr fim ao tráfico de droga? O que fez Lenine na realização do conceito de “ditadura do proletariado”? Mandou assassinar milhares de pessoas e deu origem a um regime que espezinhou os mais elementares direitos humanos. Não vejo qual é a diferença existente entre a perseguição por pertencer a outra raça ou a perseguição por pertencer a outra classe social.

Gabriel Mota Leite foge também à verdade quando escreve: “Mais, hoje, em Portugal, nem PCP nem Bloco se dizem Estalinistas ou Maoistas, nem defensores de campos de concentração, penas de morte, castrações físicas ou químicas, segregação de pessoas em função da sua cor de pele ou crenças filosóficas ou da instalação de polícias políticas.”

A 7 de Agosto de 2003, o Avante, órgão oficial do PCP, publicou um artigo em que o autor defendia as “vitórias de carácter histórico inegável” alcançadas na ex-URSS sob a liderança de José Estaline, admitindo, porém, “graves erros” na política do líder soviético. No dia seguinte, o Partido Comunista demarca-se do texto, afirmando que “a posição do PCP sobre essa fase da vida soviética e esse dirigente não é traduzida por este ou aquele artigo, ou por esta ou aquela opinião individual (que, como é o caso, responsabiliza apenas os seus autores), mas sim pela apreciação colectiva feita por órgãos responsáveis do PCP”.

Poderíamos acreditar que se tratou de uma falha de controlo da censura interna desse jornal comunista, mas, a 20 de Julho de 2020, o mesmo “erro” é cometido por Manuel Gouveia no artigo “Bomba relógio”. Ao defender a “política nacional soviética”, escreve: “Lenine, e Estaline, que primeiro discordou, mas depois assimilou e defendeu esta posição de Lenine, foram dirigentes de um Partido de vanguarda na luta pelo socialismo, foram dirigentes do Estado dos trabalhadores, lutavam pela emancipação dos trabalhadores e de todos os povos: não construíam impérios.”

No que respeita a campos de concentração, os comunistas, ou preferem chamar-lhes “campos de trabalho”, “campos de reeducação”, ou simplesmente declarar que desconhecem o que foi o gulag na União Soviética.

Como pode Gabriel Leite Mota afirmar que o PCP não é defensor de repressões por “crenças filosóficas ou da instalação de polícias políticas”, se defende regimes como o chinês ou o norte-coreano? Será por uma questão de masoquismo?

Quanto ao BE, é de recordar que este bloco foi criado por três forças políticas de extrema-esquerda: a União Democrática Popular (marxista-leninista-maoista), o Partido Socialista Revolucionário (trotskista) e a Política XXI (antigos membros do PCP e do MDP/CDE).

Estas forças políticas até podem tomar algumas posições moderadas, mas o seu apoio a regimes totalitários, ditatoriais, mostra que, chegados ao poder, não irão ser excepção à regra na construção do “futuro radioso da humanidade”.

Talvez a resposta a muitas destas perguntas esteja na forma como são leccionadas as ciências sociais nas universidades portuguesas. Deixo aqui apenas um exemplo para reflexão. Em Março de 2019, Paulo Oisiovici viu a sua tese de mestrado, com o título: “Estaline nos manuais de Portugal e Brasil”, ser premiada com 18 valores na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Entre outras coisas, pode ler-se: “A versão hegemónica sobre Stalin e os contextos nos quais viveu e atuou, atribui-lhe ‘a aura de monstro abjeto’ impondo-se como consenso, por força de uma profícua, poderosa produção editorial e, segundo Lily Marcou, ‘de preguiça intelectual’. Mas não obstante a hegemonia da sua ‘demonização’, nem o relatório Khrutchev, nem a glasnost de Gorbatchev foram capazes de arrefecer, nas profundezas da memória coletiva da ex-sociedade soviética, a ideia de que a era estalinista foi igualmente motivo de glória e orgulho nacional para os povos da URSS. Uma outra caraterística que toma Stalin invulgar, é de ser ele o único dirigente do partido bolchevique e da URSS, de origem realmente humilde, gerado de pais servos e, ainda assim, ter transformado a Rússia do arado de madeira numa potência industrial e cultural, além de dirigir a luta que livrou a humanidade do jugo nazi” (página 7).

Para onde estavam a olhar os oponentes que não viram que esta tirada tem evidentes falsidades? A que profundidade da “memória coletiva da ex-sociedade soviética” se deve mergulhar na Letónia, Lituânia, Estónia, Ucrânia e noutras ex-repúblicas soviéticas para encontrar “a ideia de que a era estalinista foi igualmente motivo de glória e orgulho nacional para os povos da URSS”?

Também não corresponde à verdade que Estalin foi “o único dirigente do partido bolchevique e da URSS, de origem realmente humilde”. Se tivessem consultado pelo menos a Wikipédia, veriam que Khruschov nasceu em 1894 numa família de mineiros; Brejnev nasceu em 1906 numa família operária; Andropov nasceu em 1914 no seio de outra família operária.

Talvez o júri tenha sido atingido por “preguiça intelectual”.

A sobrevivência da democracia em Portugal passa pelo combate ideológico contra extremismos, sejam de direita ou de esquerda. Mas, para isso, as forças democráticas devem concentrar-se na solução dos problemas do país e não na luta pelo poder e na politiquice barata, investir na educação, no combate à pobreza e à desigualdade, bem como à corrupção.

Entre o Chega, por um lado, e o PCP e o BE, por outro, venha o diabo e escolha.

P.S.: O 25 de Novembro está a chegar pela quadragésima quinta vez. Pelos vistos não será desta vez que essa data irá ser dignamente assinalada. A desculpa vai ser a pandemia. Para os mais distraídos, recordo: o 25 de Novembro de 1975 foi tão importante para a democracia portuguesa como o 25 de Abril de 1974.