O que faz um refugiado? O que leva as pessoas a fugir da sua terra e dos seus vizinhos? Será a guerra? Ou será a pobreza? No Japão, em tempos que já lá vão, o povo contava a seguinte história às suas crianças:

“Há muito, muito tempo, nas montanhas da província de Hida e nas margens do rio Saigawa, existia uma pequena aldeia onde, todos os anos, pelas chuvas do Junho, as águas castanhas e tumultuosas transbordavam e, pilhando, levavam à sua passagem casas e campos, árvores e searas, brutos e racionais. Nesta aldeia viviam Jirō, um pobre camponês, e O-Kiku, a sua ainda muito pequena filha. A mãe da menina tinha sido roubada pelas águas do rio no ano anterior. A vida dos dois era muito, muito pobre, mas tanto pai como filha conseguiam viver cada dia em grande felicidade, um porque tinha filha, outra porque tinha pai.

Mais uma vez, a estação das grandes chuvas chegara, e outra vez o rio bramava raivosamente, tentando galgar a fronteira estabelecida entre terra e água pelos deuses das montanhas. Por essa altura, a pequena O-Kiku estava doente e gravemente prostrada, mas Jirō, pobre como era, não podia chamar médico nem comprar mezinhas.

Dizia o pai à filha muito querida: ‘O-Kiku, tens de ficar boa depressa… vá, come um pouco de papa de painço para ficares boa!’

E dizendo isto, com a malga numa mão e a colher na outra, procurava dar-lhe de comer, mas O-Kiku nem mexia o pescoço nem abria a boca. Até que a certa altura murmurou: ‘Hum, não quero mais papa… queria arroz de azuki [um tipo de feijão que se usava tradicionalmente em dias de festa]…’

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Para O-Kiku, na sua curta existência neste mundo de inconstância e instabilidade e impermanência, arroz de azuki era a única delícia que lhe tinha passado pelos lábios. Tal acontecera uma única vez, ainda a mãe era viva, e fora algo que ela nunca mais esquecera. No entanto, na situação atual de Jirō, que na sua miséria não tinha com que comprar um único grão de arroz, era impensável arranjar um punhado de azuki. O pai, olhando a inocente mas febril face da filha a dormir, meditava no que podia fazer para lhe dar uma pequena alegria que lhe insuflasse vontade suficiente para agarrar a vida que se lhe fugia quando, de repente, se pôs resolutamente de pé como se tivesse tomado uma decisão que era necessário cumprir rapidamente.

‘Se for no armazém comunal com certeza que há azuki…’

E Jirō correu na noite chuvosa e quando regressou a casa trazia um punhado de arroz e outro de azuki. Esta fora a única vez na sua vida que havia furtado. Do armazém comunal havia apanhado duas mãos cheias de grãos.

Nessa noite Jirō cozinhou para a pequena O-Kiku arroz de azuki, e deu-lho a comer. Dizia o pai: ‘Vá, O-Kiku come este arroz de azuki.’

A pequena, depois de provar, gratificou-o: ‘Papá, como é bom o arroz de azuki…’

‘A sério? Yokatta, yokatta… [que bom, que bom].’

Terá sido por ter comido o arroz de azuki? O certo é que rapidamente O-Kiku melhorou e pôde levantar-se.

Entretanto, na Casa do Povo, percebeu-se logo que tinham sido subtraídos arroz e azuki. Como comunidade que não cuida do seu empobrece, os delegados faziam inventário todos os dias e todos os bagos e sementes eram rigorosamente medidos em medidas bem cheias e calcadas e devidamente contabilizadas. Quando lhe foi reportada a ratonagem o nanushi [o responsável pelo governo de uma aldeia, escolhido de entre os camponeses mais respeitáveis] disse: ‘Bom, não foi grande a perda. Mas roubo é roubo, e pelo sim e pelo não comunique-se a ocorrência ao samurai.’

Tendo recuperado a saúde, O-Kiku estava impaciente para sair da sua escura cabana e ir brincar para rua. Mas o pai, antes de sair para o campo, admoestou-a: ‘Ouve bem O-Kiku, ainda não estás completamente bem. Por isso fica deitada ainda hoje.’

No entanto, pensando que já estava curada, O-Kiku, que nunca fora de estar quieta, não conseguiu aguentar e saiu de casa para brincar. Enquanto batia a bola cantava:

‘Ton, ton, ton,
Comi em minha casa,
Delicioso arroz de azuki.
Arroz de azuki com azuki.
Ton, ton, ton,
Comi em minha casa.’

Naqueles tempos, o jogo da bola consistia em compor poemas ao ritmo da bola a bater no chão, e O-Kiku gostava e era muito hábil neste jogo. Enquanto a menina assim se divertia, no campo ao lado um camponês trabalhava, e quando endireitava as costas para limpar o suor, podia ouvir a alegre melodia da brincadeira da criança.

‘Ton, ton, ton,
Comi em minha casa,
Delicioso arroz de azuki.
Arroz de azuki com azuki.
Ton, ton, ton,
Comi em minha casa.’

Pouco depois a chuva começou a cair, e choveu e choveu e choveu durante muitos dias, de tal modo que o nível da corrente do Saigawa foi subindo e subindo e subindo até chegar à fronteira do desastre.

Diziam entre si os aldeões, reunidos na casa do nanushi: ‘Deste modo a aldeia vai ser outra vez levada pelas águas.’

Perguntou aquele: ‘O que se pode fazer?’

Sugeriu um dos presentes: ‘Que tal implantar uma coluna humana?’

Nestes nossos tempos, já quase que não se usam colunas humanas, mas antigamente, nos tempos dos nossos avós, quando os deuses das montanhas e dos ventos e dos rios se irritavam com a comunidade dos humanos, era comum enter na vertical um homem vivo, que servia de coluna propiciatória às divindades encolerizadas. Geralmente, o material escolhido era algum malfeitor culpado de, por sua ação ou palavra, ter provocado a ira dos deuses. Perguntou um aldeão: ‘Mas teremos na nossa aldeia algum criminoso?’

‘Nunca estamos livres de que não haja malfeitores.’ Assim falou o camponês que tinha ouvido a canção da bola de O-Kiku.

Perguntou o primeiro: ‘E quem será esse?’

Respondeu o segundo: ‘Para dizer a verdade, quando no outro dia estava no campo ao lado da casa de Jirō-san…’

E contou a todos o que tinha ouvido. Nessa mesma noite, quando Jirō e O-Kiku jantavam o seu painço, ouviram de repente um violento bater don-don na porta e vozes encolerizadas a gritar: ‘Jirō! Jirō! Estás aí?’

Gaguejou o pobre: ‘Eh, quem sois vós…?’

Retrucaram os vizinhos: ‘Jirō monte de estrume! Foste tu, ó escória, que no outro dia roubaste arroz e azuki do armazém comunitário, ora diz lá!’ Avançando pela casa adentro, acrescentaram: ‘A cantiga da bola que a tua filha cantou é a prova!’

E, voltando-se para a criança, gritaram: ‘O-Kiku, no outro dia cantaste a cantiga da bola acerca arroz de azuki, ora diz lá que não!’

Surpreendida com tudo o que se estava a passar e vendo a violência nas faces e vozes e gestos dos homens, a pequena só balbuciou: ‘Paizinho…’

Jirō, fazendo-lhe uma festa cheia de tristeza no negro cabelo murmurou: ‘O-Kiku, o pai volta já. Não tenhas medo e espera-me aqui.’

E deixando a filha a chorar e a clamar e a chamá-lo com todas as fibras do seu ser, Jirō acompanhou os homens. Nunca mais regressou. Nesse ano, o rio não ultrapassou os limites estabelecidos e não levou nem casas nem campos, nem árvores nem searas, nem brutos nem racionais. Quando soube que tinha sido a sua canção da bola a causa de Jirō ter sido usado como coluna humana, O-Kiku chorou dias e dias seguidos até esgotar toda sua voz.

A uma dada altura, de repente, parou de chorar e de clamar e de chamar pelo pai. Desde então nunca mais lhe ouviram pronunciar uma única palavra, nem para reclamar nem para pedir nem para explicar nem para perguntar, e todos, no vale, pensavam que ela tinha perdido o uso da fala de tanto chorar. As quatro estações sucederam-se umas às outras e O-Kiku cresceu sem articular palavra até que se tornou numa mulherzinha.

Certo dia, um caçador entrou numa montanha adjacente ao Saigawa para caçar faisões. Eis senão quando, um faisão canta, e o caçador, apontando com o seu mosquete, disparou; o zudon da detonação quebrou a sonolência crepuscular da floresta e interrompeu o voo do grande pássaro. Para reclamar o seu troféu, antes que a escuridão da noite o cobrisse com o seu manto e o entregasse aos animais de rapina, o matador apressou-se a descer a íngreme curva da montanha e a dirigir-se para os canaviais adjacentes ao rio. Já ouvia o borbulhar da torrente apressada do Saigawa quando os seus pés estancaram de repente. À sua frente, por entre o colmo, estava O-Kiku com a ave ferida de morte nos seus braços.

E dizia-lhe, baixinho, com o som da tristeza: ‘Ó faisão, se também tu não tivesses cantado, também não terias sido morto…’

Tendo dito isto, em frente do homem, desapareceu no canavial com o faisão ao colo. Depois, nunca mais ninguém a voltou a ver, e para onde foi, ninguém sabe.”

Para haver refugiados não é suficiente haver guerra. Ou pobreza. Mas basta haver dureza de coração por um lado e imprudência pelo outro. No entanto, a dureza pode estar em qualquer coração: até no dos pobres refugiados! Veja-se o que aconteceu, há tempos, em Esmirna, e no que no que alguns habitantes de Londres já dizem: “A solução para isto? Sair deste país”… Para evitar uma nova onda de refugiados é mister que prudência seja diluída na compaixão.