Segundo o relatório anual da Entidade Reguladora dos Serviços de Água e Resíduos (ERSAR) de 2021, Portugal perde cerca de 180 mil milhões de litros de água por ano, uma das perdas mais elevadas da Europa, mas a mensagem que está a ser transmitida pelo Governo por estes dias é que, afinal, a seca é culpa do consumidor final, talvez do pobre aposentado que escova os dentes com a torneira aberta (sacrilégio!). Exagero, mas sejamos claros: todos concordamos que em situações de crise hídrica (na verdade, sempre) devemos desperdiçar o mínimo de água possível. Mas não podemos concordar com a enésima “descarga” de responsabilidade do Governo. Os problemas estão mais uma vez a montante: na falta de prevenção, reabilitação e de manutenção das condutas que transportam a água até às habitações e na sua inanidade.

A seca tem sido anunciada como mais um efeito das mudanças irreversíveis provocadas pelo aquecimento global. Mas nada poderia ser mais falso, a situação portuguesa é reversível. Diz-se que esta seca não poderia ser prevista, mas não é verdade. O Governo já sabia desde Fevereiro de 2022 do desastre hídrico que Portugal sofreria nestes dias. O alarme foi dado pela União Europeia, com um documento (Drought in western Mediterranean February 2022) sobre as condições severas de seca previstas para os meses seguinte. Também o Instituto Português do Mar e da Atmosfera havia informado, em Janeiro de 2022, que a seca sentida em todo o território em finais de 2021 atingiria cerca de 91% do território nacional nos primeiros meses de 2022 e seguintes. A seca era, portanto, previsível. Porque não tomou o Governo as medidas necessárias nos últimos meses para lidar com a crise hídrica que sabia que viria? Não há dúvida de que a rede de abastecimento portuguesa está entre as piores da Europa, uma vez que o volume total das perdas de água tratada e pronta para beber tem-se mantido praticamente inalterado desde 2017, com alguns municípios a apresentar perdas que chegam aos 80%, não obstante a miríade de investimentos anunciada todos os anos.

Assim, desde o início do ano até hoje, o Governo impôs com urgência aos municípios e às entidades gestoras a obrigação de reduzir ao menos uma parte deste desperdício? Não. Viu o Governo “na seca mais grave desde que existem registos” uma oportunidade para repensar se o país se pode dar ao luxo de perder tanta água com um custo acrescido, porque é água tratada? Também não. Menos ainda foi feito para obrigar os municípios portugueses a tratar da gestão das águas residuais. Todos nós, em 2016, pagamos uma multa de 3 milhões de euros à União Europeia e desde então pagamos uma sanção pecuniária compulsória de 8.000 euros por dia de atraso no cumprimento da Directiva relativa ao Tratamento de Águas Residuais Urbanas (Processo C-557/14). Até quando teremos que pagar milhões de euros por ano por causa de um Governo e administrações que não cumprem? Estamos a falar de um processo que se arrasta desde 2009, altura em que o Tribunal de Justiça condenou pela primeira vez Portugal pelo incumprimento da referida directiva. Agora, a Comissão Europeia, no seu pacote regular de decisões relativas aos processos por infração, publicado na semana passada, ameaça voltar a sentar Portugal no banco dos réus do Tribunal de Justiça por continuar a não cumprir com os requisitos estabelecidos na directiva. Em causa estão aglomerações e cidades que não implantaram as infraestruturas necessárias para recolher e tratar as respectivas águas residuais urbanas. Segundo a Comissão, “as águas residuais não recolhidas e tratadas podem por em risco a saúde humana e poluir os lagos, os rios, o solo e as águas costeiras subterrâneas”. Treze anos e muitos milhões de euros depois, a Comissão considera que há pelo menos uma aglomeração que não dispõe de sistema colector e sessenta e duas aglomerações que não cumprem com as normas de tratamento estabelecidas pela directiva.

Refira-se que este não é o único processo de infração lançado pela Comissão Europeia contra Portugal por incumprimento da legislação europeia relativa à água. Em Julho de 2021 foi aberto um processo de infração contra Portugal por incumprimento de regras sobre o controlo da presença de substancias radioactivas na água potável engarrafada. Também aqui Portugal não cumpre com os requisitos estabelecidos na Directiva Água Potável da Euratom sobre a qualidade da água. Antes, em 2019, também tinha sido aberto outro processo por incumprimento das obrigações de comunicação sobre o estado ambiental das águas marinhas, ao abrigo da Directiva-Quadro Estratégia Marinha, porque o Estado falhou os prazos estabelecidos para o envio de relatórios informativos. Em 2018 e de novo em 2019.

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Enquanto isso, continuamos a ouvir os governantes a pregar moralismo ecológico – “Portugal não tem mesmo tempo a perder” –, a fazer promessas de transição ecológica e a ameaçar investidores que não tenham em “consideração que a água é um recurso escasso”, ao mesmo tempo em que são acusados pela Comissão e condenados pelo Tribunal de Justiça por não cumprirem com a legislação da UE relativa à água, resíduos, poluição do ar, ruído, biodiversidade, etc.; a ser submetidos a insanas medidas de racionamento de água para fins agrícolas e turísticos e a ter de ouvir os múltiplos apelos dos campeões do desperdício para “poupar” água (como o município de Chaves, que perde 468 litros por dia). Que sentido faz pedir aos cidadãos que consumam menos água, quando na realidade a maior parte dela perde-se antes de chegar às suas casas? Porque devem ser aos cidadãos a sofrer privações aquíferas pela inação dos responsáveis em tempo de abundância? Quantos reservatórios para águas pluviais foram construídos nos meses em que chuva abundou (entre Março e Abril)? E o que dizer sobre a meta “muito ambiciosa”, anunciada pelo primeiro-ministro em 2019, para “reutilizar 20% das águas tratadas”, quando ficamos agora a saber que pouco mais de 1% da água foi reutilizada desde então? E sobre os míseros 58 milhões de euros para “reduzir perdas de água no sector urbano” e “promover a utilização de água residual tratada” inscritos no PRR, que se esgotam no anunciado?

É por isso que chega a ser tragicómico, de tão absurdo que soa, ouvir os governantes dizerem que a “seca é um problema estrutural”, quando são os próprios que trabalham para aumentá-lo no futuro próximo. Um bom exemplo é a sua tendência para resolver os problemas estruturais com medidas “tampão”, como os racionamentos em andamento. Os racionamentos são a doença, não a cura.

Daqui resulta, que o verdadeiro problema não é a seca, mas a necessidade de gerir uma escassez em cima da hora, quando as margens de escolha inevitavelmente encolhem e as vítimas necessariamente se multiplicam. Então há que transferir o problema para outro lugar, para retirar de si qualquer responsabilidade possível. Daí que sinais alarmistas são enviados aos cidadãos e de todo o lado surgem discussões acaloradas sobre o uso que fazemos da água. Trinta litros para escovar os dentes? Loucos. Cem para lavar o carro? Cinquenta para tomar banho, mas estamos loucos? Em suma, são chamados os cidadãos para reflectirem sobre a suas falhas, para corrigirem os seus comportamentos, a se sentirem culpados pela grave situação de seca prevista.