As primárias no PS têm sido, a vários títulos, um processo interessante e revelador. Um dos aspectos mais interessantes têm sido as análises do posicionamento ideológico e programático dos dois candidatos: António José Seguro e António Costa.

Em artigos publicados no jornal Público, Ana Rita Ferreira e André Freire conseguiram perspectivar diferenças suficientemente significativas para posicionar António Costa à esquerda de António José Seguro. Ana Rita Ferreira baseia as suas conclusões na análise das moções enquanto André Freire fundamenta a sua perspectiva na actuação anterior de António Costa e de António José Seguro, assim como nas respectivas posições relativamente à reforma do sistema eleitoral

João Cardoso Rosas, um dos poucos opinion-makers com presença regular na comunicação social nacional que é apoiante de António José Seguro, contesta a estratégia opinativa que procura posicionar António José Seguro à direita de António Costa.

Pela minha parte, e sem prejuízo de seguir com agrado esta discussão entre interlocutores qualificados, a controvérsia tem reforçado o meu cepticismo relativamente à utilização contemporânea da dicotomia esquerda/direita. Não cabe aqui elaborar as razões teóricas e históricas do meu cepticismo (que procurei desenvolver no ensaio “Direita e Esquerda no Séc. XXI”, publicado no nº 51 da revista Nova Cidadania), mas a discussão sobre se é Costa ou Seguro quem está mais à esquerda constitui a meu ver uma poderosa ilustração prática das insuficiências da referida dicotomia.

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Atentando no discurso dos dois candidatos a primeiro-ministro, o que sobressai além das estratégias formuladas em termos vagos e recorrendo a lugares comuns, são essencialmente posições convergentes. Seguro e Costa concordam que é preciso acabar com a “austeridade”. Seguro e Costa concordam que é preciso reforçar o investimento público. Seguro e Costa concordam que é preciso renegociar a dívida. Seguro e Costa concordam que é preciso estimular o crescimento. Seguro e Costa concordam que é preciso criar emprego.

Analisada a substância dos respectivos discursos, não parece sobrar muito em termos de genuínas diferenças ideológicas ou programáticas. Uma das diferenças com mais implicações políticas práticas poderá a ser a maior proximidade de António Costa relativamente a Rui Rio. Curiosamente, muitos dos que dão por adquirida a vitória de António Costa, parecem igualmente convictos de que Rui Rio assumirá necessariamente a curto prazo a liderança do PSD. Essa proximidade pode de facto vir a ser muito relevante considerando que não se perspectiva neste momento um vencedor com maioria absoluta nas próximas legislativas, mas não é evidente que seja um factor relevante para o posicionamento no âmbito da dicotomia esquerda/direita.

Daí que me incline a concordar com João Cardoso Rosas quando refere que “a linha de corte entre apoiantes de Costa e apoiantes de Seguro tem muito mais a ver com outro tipo de amizades e solidariedades do que com a divisão esquerda/direita”. As clivagens parecem de facto ser de natureza essencialmente pessoal, como evidenciam as acusações lançadas mutuamente nos debates (arrogância, altivez, falta de lealdade, etc). O padrão de argumentação entre apoiantes reforça a mesma ideia. A título de exemplo – ainda que extremo – vale a pena recordar o comentário de Paulo Pedroso no Twitter: “Imaginem alguém com o perfil psicológico de Seguro a governar o país”.

O essencial da narrativa de muitos apoiantes de António Costa parece ser apontar que Seguro e os seus apoiantes são basicamente incapazes. Uma linha argumentativa estranha se considerarmos os dados objectivos que mostram que António José Seguro conduziu o PS a um dos melhores resultados entre os partidos socialistas a nível da União Europeia.

Nesta narrativa, António Costa seria uma espécie de solução providencial para os problemas do partido e do país, pronto a redimir o PS da notória impreparação, inabilidade e incompetência de António José Seguro e dos seus apoiantes. A narrativa encontra eco generalizado na comunicação social – onde Costa possui uma vantagem avassaladora – mas no partido a situação parece bem menos clara: nas recentes eleições para as federações do PS, Seguro teve mais votos apesar de ter ficado com uma minoria de federações. Ao contrário da comunicação social e das elites lisboetas, o PS parece francamente dividido e uma campanha interna muito personalizada e agressiva não deverá ajudar a melhorar a situação.

O resultado que neste momento parece mais certo é, infelizmente, a radicalização do PS. Essa radicalização esteve bem patente nas reticências em saudar claramente a indicação de Carlos Moedas para Comissário para a Investigação, Ciência e Inovação (reticências expectáveis entre radicais de extrema-esquerda, mas incompreensíveis no espaço da esquerda moderada).

Relativamente ao resultado das primárias, é possível, embora não certo, que reflicta o fortíssimo apoio mediático e institucional a António Costa, mas caberá aos militantes e simpatizantes do PS a última palavra.

Professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa