Escrevo deliberadamente numa altura em que é muito difícil, senão impossível, prever o resultado do referendo grego. Todas as sondagens conhecidas estão a dar um virtual empate. E todas também indicam que há ainda muitos indecisos.

Escrevo porque há algumas questões que têm a ver com a noção de democracia que quero deixar claras antes de poderem ser contaminadas pela escolha dos gregos que amanhã forem às urnas. Vamos então lá, por pontos.

1. O referendo grego é legítimo, mas terá sempre a marca negativa de surgir como uma espécie de plebiscito, e com métodos de plebiscito.

Estou entre os que há muito defendem que os temas europeus devem poder ser votados, e referendados, pelos povos europeus. Gostava que Portugal tivesse votado o Tratado de Maastricht e acho intolerável o acordo estabelecido entre os líderes europeus para que o Tratado de Lisboa não fosse referendado em nenhum país, com a excepção da Irlanda, onde tal voto é uma imposição constitucional. Também não há nada mais lamentável na história da União Europeia do que a forma como esta fez gato-sapato dos referendos francês e holandês onde o Tratado Constitucional foi chumbado, ou de como obrigou irlandeses e dinamarqueses a repetirem referendos até votarem “bem”. Estive também entre os que não condenaram Papandreou quando este quis levar a votos o acordo a que tinha chegado, em 2011, com as instituições europeias. Pelo contrário, condenei o desnorte europeu.

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Por tudo isto, em condições normais, estaria a aplaudir a decisão de Tsipras. Acontece que aceitando-a, não a aplaudo. A forma e o timing escolhidos estão a fazer o povo grego passar por um sofrimento desnecessário. O líder grego podia ter anunciado essa sua intenção com tempo e preparação, em vez de convocar um referendo inopinadamente e cuja pergunta é, no mínimo, confusa e bizarra: pede aos gregos que aprovem uma proposta de acordo que, entretanto, deixou de estar sobre a mesa das negociações.

Não posso também deixar de subscrever todas as reservas que o Conselho da Europa colocou à forma como os gregos vão ser obrigados a votar, pois há regras de pluralismo no debate público e de igualdade de oportunidades que não estão a ser cumpridas. O referendo ganhou por isso contornos de plebiscito, com a emoção a sobrepor-se à razão, pecado que todos estão a cometer.

Mesmo assim, colocadas todas estas reservas, o referendo será clarificador – pelo menos é o que esperamos que aconteça. Apesar de não o fazer nas melhores condições e de acordo com as melhores práticas, o povo grego pronunciar-se-á. E isso, para o melhor ou pior (ou para o mau ou para o péssimo, pois já não há boas opções), ajudará sempre tornar as escolhas mais claras.

2. A escolha do povo grego será democrática, mas não será uma escolha soberana. Também não terá mais valor do que as escolhas dos outros povos europeus.

Um dos equívocos de toda esta crise é a ideia de que a escolha dos gregos, por ser democrática, não pode ser contestada e só pode ser respeitada. À letra.

O primeiro equívoco é sobre o sentido desta última ideia: o que significa, na prática, “respeitar” a escolha dos gregos? O que muitos dizem é que tem de se lhes fazer a vontade. Ou seja, que depois de votarem passa a existir apenas uma legitimidade democrática, a deles, a de Atenas. Tudo o resto, como pudemos ouvir nesse extravagante debate-comício que juntou Pacheco Pereira, Freitas do Amaral e Francisco Louçã, é mais ou menos equivalente a uma ditadura dos tecnocratas europeus. Era bom que fosse assim, até porque também eu tenho tudo contra os tecnocratas europeus, mas não é.

Na verdade, por mais democrática que seja a decisão dos gregos, de sim ou de não, ela começa por não ser uma decisão soberana. Primeiro, porque os gregos transferiram para Bruxelas, ao longo dos anos, muita da sua soberania. Já não podem, por exemplo, imprimir moeda, um recurso que lhes teria permitido evitar as filas para os multibancos ou o desespero dos reformados. Depois, porque o que está em causa – as condições em que vão continuar a receber dinheiro das instituições europeias – não depende apenas da sua vontade. Depende sobretudo da vontade dos representantes legítimos, porque senhores de uma idêntica legitimidade democrática, dos outros povos europeus. Não apenas dos mais ricos, mas também de alguns mais pobres.

O cerne do problema é simples de sintetizar: a Grécia já não tem soberania absoluta sobre o seu destino porque não tem dinheiro para pagar as suas escolhas e porque está a lidar com instituições às quais cedeu parte do poder de decidir o tipo de políticas que os seus governos são autorizados seguir. É duro mas é assim, e isso leva-nos ao terceiro equívoco.

3. Na União Europeia vive-se numa espécie de limbo pós-soberano, onde não se sabe bem onde reside o poder real, algo que nos conduz a um pesadelo bem pior: caminhar-nos como zombies para o tempo de uma imprevisível pós-democracia.

A criação do euro, podemos começar a afirmá-lo sem receio de errar, foi muito mais do que um erro: foi uma tragédia que pode fazer ruir uma União Europeia que só tem sentido se resultar da união voluntária dos seus povos. O euro foi a armadilha em que os “grandes europeus” do passado, os que tinham “uma visão”, quiseram aprisionar quase todo um continente em torno de uma utopia: uma integração cada vez maior que conduzisse inevitavelmente a uma qualquer forma de “Estados Unidos da Europa”. Ainda a semana passada ouvi Durão Barroso, no Estoril Political Forum, repetir o argumento de que só unida a Europa voltará a ter força no mundo, pelo que só se pode prosseguir pelo caminho de mais integração, uma visão com alguma nostalgia do tempo dos impérios. Não tenho também deixado de ler tudo o que Paulo Rangel tem escrito sobre o “fim da soberania”, em defesa da ideia de que esse conceito morreu e que só nos resta, para ainda termos alguma influência, diluirmo-nos numa Europa cada vez mais federal (palavra que, no entanto, por regra evita utilizar).

A minha resposta a esta ideia de que vivemos uma espécie de tempos pós-soberanos é que esse conceito só pode trazer consigo um qualquer tipo de pós-democracia – e por isso não posso deixar de me lhe opor com todas as minhas forças.

É por isso que abro a boca de espanto quando leio, vejo e ouço tudo quanto é dirigente europeu e português a defender que a cura dos males do euro – que hoje todos reconhecem – exige ainda mais transferências de soberania dos Estados para a União. O que nos estão a dizer é que querem mais do que já hoje consideramos intolerável, isto é, que mais e mais decisões que implicam com a nossa vida de portugueses, franceses, espanhóis, italianos e, claro, gregos, sem esquecer todos os outros, saiam da esfera de competência dos nossos parlamentos e dos nossos governos e sejam entregues a um poder centralizado que não controlamos e cujo problema não é apenas um défice de democracia, é ser na sua essência não-democrático (um dia escreverei sobre este tema com mais detalhe, pois é importante e sei que estou totalmente isolado em Portugal).

Felizmente que hoje temos poucos políticos “visionários” capazes de darem o passo nesse desconhecido que seria uma Europa irremediavelmente divorciada dos seus cidadãos – porque esse divórcio é cada vez mais evidente.

Não deixo por isso de simpatizar com os gregos quando eles se queixam de quererem mandar neles. Só lamento que não tirem disso a necessária consequência, pois enquanto dependerem do dinheiro dos outros, como esta semana ficou demonstrado sem qualquer sombra de dúvida, terão de aceitar as regras desses outros. Essa é também a razão porque penso que seria melhor para os gregos e melhor para a Europa que saíssem do euro, votem sim ou votem não (se votarem não isso tornar-se-á inevitável, agora ou daqui por alguns meses).

O problema dos projectos utópicos é que, em seu nome, se está disposto a violar todas as regras, as legais e as do bom senso. O que interessa é seguir sempre em frente, na tal bicicleta que, se parar, cai. Se queremos mesmo salvar o que é essencial no projecto europeu – todas estas décadas de paz, as condições do progresso económico e o respeito pela democracia e pela vontade dos cidadãos –, então temos de perceber que quando se toma um caminho errado a solução não é insistir em seguir em frente, é tentar um caminho alternativo. A crise grega e o próximo referendo britânico fazem com que esta seja, provavelmente, a melhor altura para o discutirmos seriamente, e não em torno de mais “visões” e “ambições”.

Até lá, referendos ou plebiscitos como os da Grécia nunca serão verdadeiras vitórias da democracia. Vença quem vença, pois como vimos o destino dos gregos está cada vez menos nas suas mãos.