1 Antes de entrar na mais evidente prova de que o Governo está completamente desorientado em apenas três meses (?!?!), gostava de começar por um pequeno exercício de memória que partilhei no Twitter no dia da exibição do reality show “De Coração Apertado ” — créditos do título para a ministra Ana Abrunhosa, sff — e que gostava de aprofundar.

Recuemos a dezembro de 2000. O Governo de António Guterres tinha ficado a um deputado da maioria absoluta em outubro de 1999 mas, ao fim de seis anos de poder, estava nas ruas da amargura.

Eis senão quando o ministro da Justiça, político muito ambicioso e (então) amante de jogadas arriscadas, resolveu testar a autoridade política do indeciso António Guterres.

Ricardo Sá Fernandes era o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais do ministro Joaquim Pina Moura (por quem Costa e muitos outros ministros não morriam propriamente de amores) e como antigo advogado das famílias das vítimas de Camarate fez declarações públicas a criticar o comportamento da Justiça durante a investigação do caso a propósito do 20.º aniversário da tragédia com a aeronave que transportava Francisco Sá Carneiro, Snu Abecassis, Adelino Amaro da Costa, António Patrício Gouveia e mais tripulantes.

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As declarações em si, nada tinham de novo perante o que Sá Fernandes já tinha dito várias vezes no passado. Não estava em causa qualquer espécie de pressão sobre o poder judicial — uma matéria a que sou sensível, como todos os que me lêem sabem.

2 António Costa, sempre florentino, resolveu dramatizar as declarações de Sá Fernandes em direto no Jornal da Noite da SIC. E disse ao país que tinha apresentado a demissão ao primeiro-ministro porque não podia “partilhar responsabilidades governamentais com quem se pronunciou sobre as autoridades judiciárias em termos” que Costa considerou incorretos.

Na prática, o ministro da Justiça acusou o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais de violar o princípio da separação de poderes.

Apenas três anos depois, o mesmo António Costa tão cioso da separação de poderes não achou melhor do que, enquanto líder parlamentar do PS, andar a tentar negociar com o procurador-geral da República Souto Moura — por si indicado para líder do Ministério Público, refira-se — a entrega de Paulo Pedroso às autoridades judiciais e a tentar contactar o procurador responsável pela investigação.

Resultado: foi acusado indiretamente pelo juiz de instrução que mandou prender Pedroso de perturbação de inquérito.

Quando deu a entrevista à SIC, a ideia de Costa não era obviamente demitir-se. Se o quisesse realmente fazer, falava com Guterres, demitia-se e ia-se embora. A jogada era mostrar o seu peso político e posicionar-se para o futuro do PS num momento em que o Governo Guterres estava em franca decadência.

A jogada do então jovem António Costa, refira-se, correu-lhe muito bem. Guterres, que nunca foi conhecido propriamente pela coragem política, aceitou ser pressionado, recusou a demissão do ministro da Justiça e provocou a demissão de Sá Fernandes.

3 Regressando ao presente e ao caso do Novo Aeroporto de Lisboa, confesso-vos: desde o Governo Santana Lopes que não via tamanha trapalhada, amadorismo e, acima de tudo, falta de noção do mais elementar respeito por regras básicas de funcionamento do poder executivo.

Porque no fim do dia a pergunta que fica é simples: haverá outros ministros que andam a trabalhar nas costas de António Costa, sem que o primeiro-ministro faça a mais pequena ideia do que se preparam para mandar publicar no Diário da República?

Mais: podemos mesmo confiar no que este Governo aprova e manda publicar no Diário da República? Marta Temido não se prepara para mandar construir um hospital sem que Costa saiba? O ministro da Educação não mudará radicalmente os programas pedagógicos pela enésima vez enquanto o primeiro-ministro está em Bruxelas? A ministra da Defesa não decretará a reposição do Serviço Militar Obrigatório?

A segurança jurídica do que é publicado em Diário da República por ordem do Governo está mesmo assegurada?

Ah! E, já agora, outra coisa: Mariana Vieira da Silva coordena mesmo a produção legislativa do Governo ou é só um verbo de encher? Lamentável a figura que fez na habitual conferência de imprensa no final do Conselho de Ministros. A n.º 2 do Executivo não foi tida nem achada na publicação em Diário da República de um despacho normativo que compromete o Governo com a construção de infra-estruturas fundamentais, que invoca sucessivamente decisões governamentais que não existiam e que até chega a avançar que o Governo vai alterar um decreto-lei para a construção do aeroporto complementar do Montijo avance o mais rapidamente possível.

Até podemos dizer que a ministra da Presidência não pode estar atenta a tudo o que é publicado em Diário da República mas repete-se a pergunta: Vieira da Silva coordena mesmo alguma coisa do ponto de vista político?

Estas são perguntas absolutamente legítimas que os portugueses colocarão, atónitos que estão com o que aconteceu na última quinta-feira.

4 Deixando as perguntas de lado, e tendo consciência que ainda faltam saber as reais razões que levaram Pedro Nuno Santos a fazer lembrar os antigos pilotos japoneses que atuavam em modo kamikaze, há vários aspetos que são claros para mim:

  • O ministro Pedro Nuno Santos decidiu tomar decisões fundamentais para o futuro do país nas costas do primeiro-ministro, comprometendo o Governo com obras que devem custar ente os 5 mil e os 10 mil milhões de euros;
  • Há um ministro que fez gato sapato do que António Costa sempre disse publicamente sobre a necessidade de acordar as grandes obras com o principal partido da oposição. Costa diz isto, e bem, desde 2015…
  • O ministro das Infra-Estruturas até chegou a colocar em questão a ótima relação que o primeiro-ministro tem com o Presidente da República ao ser totalmente indelicado com Marcelo Rebelo de Sousa nas entrevistas televisivas que deu no dia em que mandou o seu secretário de Estado publicar o despacho em Diário da República;
  • E, finalmente, Pedro Nuno Santos ainda conseguiu a proeza de apagar uma boa vitória para Portugal que António Costa conseguiu na cimeira da NATO em Madrid: dois centros de inovação tecnológica, que se concentrarão em inteligência artificial, processamento de dados, biotecnologia, sistemas de armamento autónomos e novos materiais e espaço, virão para o nosso país a partir do próximo ano.

As consequências também são igualmente claras:

  • António Costa foi publicamente desautorizado de forma particularmente vexatória, já que o próprio foi obrigado a reconhecer de que nada sabia. Mas teve medo de repor a autoridade por via da demissão do ministro das Infraestruturas. Porquê? Porque Pedro Nuno Santos tem influência e controla uma parte importante no aparelho do PS. A vida tem muitas ironias e Costa acabou por vestir a pele de António Guterres ao fim de 22 anos.
  • Independentemente de ter determinado a revogação do despacho, António Costa sai claramente com a autoridade diminuída. E os restantes ministros sabem disso. Isto nunca aconteceria com Cavaco Silva. E, já agora, também não aconteceria com José Sócrates.
  • Já Pedro Nuno Santos sai deste episódios com a autoridade completamente estilhaçada. A conferência de imprensa em modo “Perdoa-me” foi particularmente dolorosa de ver. Apesar de discordar de muitas das suas ideias, reconheço inteligência e capacidade política a Nuno Santos e fiquei impressionado com a humilhação a que se sujeitou para ficar no poder.
  • Espero que Mariana Vieira da Silva, por seu lado, já tenha revistos os seus mecanismos de coordenação política e legislativa. É o mínimo que se exige depois de ter sido atropelada pelo bulldozer Pedro Nuno Santos.
  • E o Presidente da República ficou claramente insatisfeito com o facto de António Costa não ter demitido Pedro Nuno Santos, quando tinha todas as razões para o fazer.

5 Como se isto não bastasse, ainda tivemos a ministra Ana Abrunhosa a dar um espetáculo público impróprio de um ministro da República.

Num tom que variou entre o infantil e o de apresentadora de um talk show da tarde, tipo “Ana Abrunhosa convida…”, a ministra da Coesão Territorial não achou nada melhor do que abrir o seu coração a uma audiência constituída por autarcas e falar da ‘crise entre o António e o Pedro’.

“Perdoem-me o aparte, andei de coração apertado o dia todo, mas hoje estou duplamente feliz. Pedro estás aí a ouvir-nos? Mando um grande, grande abraço!”, disse.

“Esta solidariedade entre membros do Governo tem de existir e não cobremos aos outros aquilo que não somos, não somos perfeitos todos erramos. Quando temos a humildade de reconhecer o erro, temos ainda muito mais valor e quer gostemos quer não, é uma excelente pessoa. Um ótimo colega de Governo, um ótimo ministro, que ajuda todo independentemente da cor, do território”, acrescentou Ana Abrunhosa

Este Governo já é uma comédia!

6 Tudo isto foi uma oferta em bandeja de ouro para o novo líder do PSD que tomou posse este fim-de-semana no Porto. E, refira-se, que Luís Montenegro não desperdiçou a oportunidade numa reunião magna em que se já viu uma enorme diferença face ao líder deposto Rui Rio.

Em dois discursos um pouco longos demais, Montenegro mostrou capacidade e iniciativa política, uma preocupação importante com a unidade do partido e uma estratégia correta para tentar captar mais eleitores.

Começando por esta última. Recusou, e bem, entrar em debates ideológicos ou guerras culturais mas posicionou o PSD onde sempre esteve: no centro-direita. Quer um partido moderado e quer manter a matriz do PSD que sempre esteve focado no indivíduo e nas suas aspirações, recusando a estatização da vida coletiva e tendo a sociedade civil como o centro das suas políticas públicas.

Respondendo aos analistas mais desejosos de agradar ao PS, Montenegro enfatizou bem que não se aliará com um partido xenófobo e racista como o Chega. Aliás, é uma ironia que Rui Rio, o líder mais iliberal e autoritário que PSD alguma vez teve, tenha recebido sempre muitos elogios dos mesmos comentadores que agora tenta colar Montenegro ao Chega.

Mostrou iniciativa política ao rejeitar, desde já, um referendo à regionalização, posicionando assim o PSD ao lado de uma campanha do “Não”. Propôs uma programa de emergência social face ao aumento do custo de vida dos portugueses e quer apresentar propostas para alivio fiscal das famílias e empresas.

E, por último, mostrou capacidade de união ao convidar Joaquim Miranda Sarmento, um homem que Rui Rio trouxe para a política, para se candidatar a líder parlamentar e constituiu uma direção forte que tem Paulo Rangel, Miguel Pinto Luz, António Leitão Amaro, Pedro Reis, Margarida Balseiro Lopes, entre outros.

São nomes fortes que consubstanciam uma mudança, com diferentes gerações representadas e um número significativo de caras novas que nunca tinham tido cargos relevantes dentro do PSD.

Queiram os fiéis de Rui Rio que dominam a bancada parlamentar do PSD promover a paz entre as diferentes fações e Luís Montenegro terá todas as condições para ter um mandato sem oposição interna até às legislativas de 2026.

A verdade é só uma: ninguém tem paciência para aturar mais guerras internas dos social-democratas, como o país também já deixou de achar piada aos erros de substância do Governo.

Texto retificado às 17h00 no quinto e sexto parágrafo do ponto 3.