A coisa vale tanto na esfera pessoal como na política. É preciso procurar fazer sentido do que se passa, admitindo, ao mesmo tempo, um vasto domínio ao sem-sentido. Se não conseguirmos fazer sentido de nada, toda e qualquer acção reflectida é impossível e vamos, aos tropeções, até ao primeiro precipício das redondezas. Se queremos fazer sentido de tudo, ainda é pior. Já caímos dentro do precipício e arriscamo-nos a nem sequer reparar nisso. O sentido todo não é para nós e há instituições pouco desejáveis destinadas a recolher aqueles que o julgam ter descoberto. Ninguém disse que a vida é fácil. É dura e depois morre-se.

Em todo o caso, o sentido está sempre a mudar. O que faz sentido para nós num certo momento da vida, deixa de o fazer depois, ou só o faz por um mais ou menos penoso esforço de memória. E do que faz sentido para a sociedade, o melhor é nem falar. Tentamo-nos adaptar. Agir sem ofender os novos costumes, ainda por cima sabendo de um saber de experiência feito que em breve os novos costumes serão velhos costumes. De repente, como num caleidoscópio, os vidrinhos, agitados, formam uma nova configuração e é preciso descobrir, mais uma vez, uma nova maneira de nos orientarmos. É inútil protestar, excepto em casos de demasiado óbvia degradação colectiva, como, já agora, parece ser aquele em que Portugal anda, meio inconsciente, a viver. Neste momento, os hospitais são o sinal maior disso. À pala das “cativações” do ministro Centeno, greves e demissões sucedem-se quase diariamente. Em poucos dias, a nova ministra da Saúde já anda a fazer as mesmas tristes figuras a que nos habituámos no anterior, que deve andar muito aliviado por já não ter que prometer muitas vezes aquilo que sabia não poder cumprir. Milagres do “virar a página da austeridade”, como diz a consagrada vigarice que arrisca o cidadão indefeso a ir desta para melhor entre os sorrisos do Dr. Costa. Mas, tirando isso, e o que permite isso, um governo da mentira e da efabulação permanente, o melhor é não nos incomodarmos demais. Haverá sempre um pouco de sentido que possamos fazer nosso e ao qual nos seja permitido agarrarmo-nos no dia-a-dia.

Apesar de todas as suas mudanças caleidoscópicas, o sentido define-se em correspondência com a tradição, para a prolongar ou para a rejeitar. E constitui-se por uma relação ao desconhecido. No caso da rejeição da tradição, isso é evidente. A busca de uma sociedade diferente significa forçosamente um passo em direcção ao desconhecido, em direcção a novas representações e a novos sentidos. A tradição serve como imagem negativa da qual se procura o avesso positivo. Mas a relação ao desconhecido não é, apesar das aparências, menos efectiva no primeiro caso. Exceptuando no que respeita àquilo que os antropólogos, com maior ou menor precisão, chamam “sociedades frias”, sem escrita e sem “história”, onde, a bem dizer, não se pode falar propriamente de “tradição”, o prolongamento da tradição exige uma reavaliação e uma reinterpretação do sentido da tradição, determinada em larga medida pelo confronto com as tentativas de substituição da tradição.

Apenas um exemplo, colhido numa época particularmente favorável a estas reflexões – mas exemplos mais pacatos encontram-se em todos os tempos. A defesa do direito hereditário dos reis por Edmund Burke em 1790, nas Reflexões sobre a revolução em França, só pôde ser aquilo que foi no contexto de uma reacção aos desenvolvimentos que viriam a conduzir ao extraordinário discurso de Saint-Just de 13 de Novembro de 1792, na Convenção, onde se pedia a condenação à morte de Luís XVI. (O discurso de Saint-Just, se me é permitida uma opinião, é de um brilho literário monstruoso, com uma mistura de lucidez e loucura capaz de fazer gelar o sangue do mais indiferente indivíduo; Michelet escreve: “magistralmente sanguinário”.) Burke não se limita a repetir, por exemplo, os argumentos no capítulo de Jaime I no Basilikon Doron de 1603. O mesmo objecto – o direito divino dos reis – ganha um sentido novo.

Em ambos os casos, estava-se face ao desconhecido, e é o desconhecido, como já o dizia perfeitamente Aristóteles, que tinha o dom único de formular inauguralmente os problemas de modo definitivo, que exige deliberação moral e política. Uma deliberação cujos fundamentos se renova. Como escreve Burke, “uma opinião absurda respeitante ao direito hereditário do rei à coroa não impede outra, que seja racional e fundada sobre sólidos princípios legais e políticos”. A tradição é reavaliada e reinterpretada (ao “absurdo” substitui-se o “racional”) a cada momento. E Burke, apesar do tom que era obrigado a manter, não se encontrava menos face ao desconhecido do que Saint-Just no glacial entusiasmo do seu discurso de 13 de Novembro (que ele próprio se refere a uma tradição: a execução de Luís “repete” o assassinato de César). Além disso, a tradição pode voltar, nas suas formas mais banais e aparentemente insignificantes, quando menos se espera. Há uma passagem memorável da História da revolução francesa de Michelet que sempre me impressionou. Robespierre, perto do seu fim, foge perseguido pelas ruas de Paris, ensanguentado, com os maxilares partidos, e às tantas cai. Um passante ajuda-o a levantar-se. Robespierre agradece: Merci, monsieur. “Monsieur”, palavra banida e substituída durante anos por “Citoyen”, reaparece subitamente naquele momento de derrelicção, como o ressurgimento de um sentido desaparecido. O desconhecido está onde menos se espera: às vezes, no coração da própria tradição.

O que faz sentido muda. E a mudança caleidoscópica dos sentidos pode trazer consigo muitas surpresas. Os que se vêem como agentes e depositários únicos dessas mudanças erram: elas pertencem a todos e, por vezes, dirigem-se para lugares imprevisíveis. Não é esse, de resto, o seu único erro. Demasiadas vezes, o forte sentimento da propriedade do sentido leva-os a julgar que o detêm todo. Na vida privada, esse excesso costuma pagar-se caro. Na vida política, nem tanto. Suponho que a tendência a perdoar tal excesso político é o que se costuma chamar tolerância. Pode ser arriscada, mas o risco faz parte da nossa maneira de viver.

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