Ouço, muitas vezes, as pessoas a dividirem-se entre as que são sensíveis e as que não são. Como se houvesse os “muitos sensíveis” e os “pouco sensíveis”. Os impressionáveis e os frios. Os hipersensíveis e os indiferentes. Como se a sensibilidade fosse uma “característica de fabrico” que nos distingue, separando aqueles que sentem mais fundo dos outros que serão, aparentemente, rudimentares ou toscos diante da forma como sentem. Como se o que se sente não dependesse, sobretudo, da forma como aprendemos a viver os sentimentos. Com liberdade ou, em alternativa, protegidos com barreiras de tudo o que sentimos.

Sentir supõe ter órgãos de sentidos e experimentar sentimentos. Sentir com os órgãos dos sentidos significa  registar, ligar informação, categorizar e aprender. E, de cada vez que se regista uma nova realidade, sempre que com isso despertam uma ou várias emoções, atribuir-lhe um significado e transformá-las em sentimentos.  Validar os órgãos dos sentidos com as emoções que eles nos trazem, criando um outro sentir. Daí que a sensibilidade implique intuir, discorrer (de forma fulgurante) e pensar. Mesmo sem querer. Ou, se se preferir, sem a intencionalidade de quem se propõe delinear um raciocínio lógico ou abstrair. Sentir (por mais que não pareça) é sempre conhecer. Na verdade, reconhecer. Ao contrário, reprimir a sensibilidade, mesmo que isso se faça em nome do conhecimento ou da objectividade que se procure para ele, será desconhecer.

Considerando o “equipamento de base” da natureza humana, todos nascemos sensíveis. Aliás, todos somos inacreditavelmente intuitivos. Todos somos atentíssimos. E todos somos tremendamente inteligentes. É claro que quando um bebé tem “muita mãe”, numa dedicação plena, e sem ruídos a atrapalhar aquilo que ela tenha para lhe dar – adequando-se cada um dos dois aos ritmos um do outro, e lendo-se, sem barreiras, olhos nos olhos – os bebés educam com ela a sensibilidade com que nascem e as mães aprofundam com eles a sua (naquilo a que muitas delas chamam, com vaidade, “sexto sentido”). Estes bebés são, sem dúvida, “os meninos da sua mãe”. Que acaba por ser uma forma de reconhecermos que têm com ela uma comunicação tão íntima e tão subliminar que faz com que um e outro se sintam e que comuniquem, muitas vezes, à margem da necessidade da palavra. Habitualmente, estes bebés são os filhos mais velhos duma fratria. Aqueles a quem as mães se agarram com mais paixão. E com quem vão do encantamento ao deslumbramento, estabelecendo uma relação que faz deles crianças “mais sensíveis”. Muitas vezes, também, aparentemente mais frágeis. Talvez por isso, duma forma um bocadinho esotérica, sejam considerados por algumas pessoas como crianças índigo, de cristal ou arco-íris. Não tanto porque uma tamanha sensibilidade tão educada lhes faça mal. Mas porque nem sempre ela surge acompanhada dum acesso expedito e claro à palavra. E por uma garra guerreira. E, depois, porque o delay entre a forma fulgurante como sentem e percebem e o modo como verbalizam e actuam, em tempo real, diante de tudo isso, é grande. O ruído da sensibilidade surge disto mesmo: da forma como nem sempre se  validam os sentidos com os sentimentos.

Por outro lado – e considerando, ainda, o “equipamento de base” – por mais que o cérebro das raparigas e o dos rapazes não sejam, à partida, milimetricamente iguais, a relação que um bebé começa por ter com a sua mãe, estimula-o tão profundamente que as redes nervosas que daí resultam esbatem muitas das diferenças que possam existir, de início, entre uns e outros, diante da sensibilidade. Por outras palavras, as raparigas não são mais sensíveis que os rapazes. Os rapazes são, isso sim, em consequência duma educação sexista que os prejudica, incentivados a reprimir a expressão da sensibilidade, em primeiro lugar, para que, depois – de tanto a reprimirem, ao longo do tempo – desenvolvam uma espécie de iliteracia diante dela. Que faz com que muitos homens, ao fim de anos de repressão, pareçam toscos ou atrapalhados diante daquilo que sentem, entaramelados com as palavras que dedicam aos seus sentimentos, incapazes de chorar no cinema ou de dizer: “Amo-te!”, com uma transparência e uma convicção que venham “lá do fundo” .

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Para mais, não é verdade que, uma vez sensíveis, sejamos sensíveis para sempre. A exposição a dores agudas e a sofrimentos continuados introduz uma frieza na sensibilidade própria de quem se põe em guarda, quase num alerta permanente de sobrevivência, “antes” de sentir. Como, também, o modo como nos tornamos falsos, aos bocadinhos, faz com que, a longo prazo, a confusão entre o rosto e a máscara iniba e arrefeça a consciência e a expressão da sensibilidade. Isto é, pode criar-se uma fractura entre a sensibilidade que se sente e aquela que se assume e se expressa, que acaba por se traduzir numa aparente frieza que, com o tempo, se transforma numa perturbação da personalidade. Num vício de forma. Que parece ter pouco a ver com a doença psicológica mas que acaba por ser uma forma dela se expressar em quadros somáticos dos mais diversos. Cardiovasculares, inflamatórios, auto-imunes, etc.

Somos, portanto, todos, naturalmente, sensíveis. E ganhamos se da sensibilidade à palavra não se interpuserem obstáculos. E somos tão inacreditavelmente sensíveis que, diante dos outros, sentimos como eles. Sentimos com eles! Uma vez mais, de forma natural. A empatia nasce connosco. Ficamos tristes quando eles estão tristes. “Atrofiamos” sempre que eles “desatinam” diante de nós. Parecemos um bocadinho “possuídos” pelos seus sentimentos que, em determinados momentos, se tornam, também, nossos. O que faz com que, muitos dos nossos filhos, quando descobrem esta sua capacidade, manifestem alguma insegurança diante daquilo que são. Que, muitas vezes, não joga com aquilo que sentem ou com o que conseguem manifestar, diante de algumas pessoas. Não conseguindo destrinçar o eu do outro. É fácil perder-mo-nos da empatia. Basta que sentidos e sentimentos se confundam e “desconfiem” uns dos outros.

Para complicar, ainda mais um bocadinho, a nossa capacidade para transformar a experiência em algoritmos é de tal forma inacreditável que, aparentemente quase “do nada”, somos pujantes e clarividentes quando pré-sentimos.  Como se – antes, ainda, de experimentarmos um sentimento – os pressentimentos fizessem com que o antecipássemos, o entendêssemos e, através dele, chegássemos ao futuro antes dele chegar. Já re-sentir é aquilo que fica dos sentimentos aos quais vedamos a palavra.

Porquê falar-vos de sensibilidade, hoje? Porque uma guerra nos desperta para aquilo que somos capazes de sentir. E que, em muitos momentos, parecia adormecido. Ou mais ou menos furtivo. Mas conversarmos sobre a sensibilidade tem, também, outro objectivo. Serve para alertar para a forma como uma exposição recorrente à dor nos distrai, nos maça e nos cansa. E pode tornar-nos, aos poucos, indiferentes. O que, diante do sofrimento dos outros, nos pode levar a transformá-lo numa espécie de reality show. Num sofrimento que, quando se iniciou, era nosso, também. Mas que quando se repete e repete parece mais dos outros do que nosso. Para que, progressivamente, se torne só deles. E estranho ao que é nosso.

Aquilo que nos separa não passa tanto por sentir ou não sentir. Mas por escutar, acolher, interpretar, falar dos sentimentos e agir com aquilo que se sente. Ou reprimir, censurar, iludir, distorcer ou silenciar o que se sente. É isso que faz com que uns pareçam sensíveis e outros não. É isso – só, mesmo, isso – que nos separa. Nada mais