Há um texto do Raul Brandão que vai assim:

“Todo o dia a velha se queixou exausta, todo o dia o homem ralhou com ela, até que chegou a noite e se meteu na cama a gemer. No outro dia acordou cega. E três dias esteve hírtega, sem bulir, deitada na enxerga.
– Ela está muito doente, Sr. José.
Mas ele, que tinha que ir à feira no sábado, teimava:
– Está constipada. Mata-se-lhe uma pita para lhe fazer um caldo e fica boa.
Na véspera da feira a mulher revirou o olho, ele pôs um xale pela cabeça dizendo à meia dúzia de labrostes de suíças e bocas de peixe, sentados à roda do sobrado:
– Com esta é que eu não contava!
Dá-se a ceia de morte, acode o mulherio a comê-la e depois do caldo reza-se um Ave Maria pela defunta cor de cera, ali ao lado sobre a enxerga.”

Quando li estas linhas pensei no país de septuagenários refilões que somos. Somos velhos que resmungam com quem mais amamos, escondendo os nossos afectos em ricochetes verbais. Somos tortos, arrevesados, tantas vezes insuportáveis. Odeio maridos a respingar com as suas mulheres e, depois, tantas vezes dou por mim na mesma senda descrita pelo Raul Brandão neste velho teimoso enviuvado subitamente. Por que será tão natural para nós este alfabeto de crosta mal disposta?

Eu não quero ser uma crosta mal disposta. Não sabendo eu se vou durar muito tempo, gostava de passá-lo a amar melhor aqueles que Deus me deu. Isso significa que tenho uma luta constante dentro de mim entre o velho descrito pelo Raul Brandão e esse outro homem agradecido que desejo ser. O meu material de raiz corresponde à nossa ancestral tradição de querer diminuir com canjas as dores dos que nos estão mais próximos, numa frieza que não foi calculada mas que, de facto, assim acaba por ser. Somos oportunidades de ternura perdidas.

Quando passei mais tempo fora do nosso país irritava-me, tenho de confessar, o excesso de açúcar nos modos dos outros povos: os norte-americanos nas suas fosquices, os elogios sintomáticos dos brasileiros, por aí fora. Nós, portugueses, como pobres que sempre fomos, desconfiamos quando a esmola é grande. E o fenómeno mais acessível, na reacção ao que nos outros nos parece excessivo, é a consolidação do septuagenário refilão dentro de nós. Os portugueses nascem com uma lombriga que é esse septuagenário refilão cá dentro. Eu ainda vou a meio dos quarentas mas esse septuagenário refilão cá dentro cresce e cresce, como uma hérnia a estragar-me a coluna.

Às vezes dá-me uma vontade de abrir as entranhas e sacar o septuagenário refilão de dentro de mim. Dá para visualizar a cena? Esfaquear-me a mim mesmo para uma operação sem anestesia em que extraía de dentro da barriga o pequeno gnomo que me mantém numa azia perpétua… Se fosse atendido rapidamente no hospital talvez sobrevivesse. Talvez haja vida para os portugueses que tentam viver sem o septuagenário refilão que trazem nas vísceras.

Gostava de matar o septuagenário refilão que há em mim antes que o septuagenário refilão me mate a mim. Talvez por isto, a vida eterna me pareça tão ajustada. O melhor da vida eterna ser eterna não é a soma do tempo mas a sua eliminação. Na eternidade não há tempo e por isso septuagenários refilões deixam de ser septuagenários e deixam de refilar.

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