A semana passada, um homem dizia-nos: ‘isto é impressionante, nunca pensei viver isto, sinceramente, ao fim de 67 anos nunca pensei viver uma coisa destas.’ Por detrás da sua máscara, olhos rasos de lágrimas, é possível captar a vivência da sua ansiedade. Essa ansiedade que tantos nos alertam como consequência destes tempos perigosos de Covid. Mas o que nos chamou realmente a atenção foi este homem situar este tempo presente como uma ruptura na sua história. Como se não conseguisse viver o momento presente sem perder essa linha contínua entre passado e futuro.

Este homem anuncia os seus 67 anos. Ele viveu tempos de ditadura, ele viveu tempos em que a saúde não era para todos, viveu guerras, testemunhou revoluções. Viu direitos das crianças serem destacados, defendidos, a escola a ser para todos – eliminando o que poderia constitui-se como barreiras à participação para alguns. Viu a Psiquiatria deslocar-se dos modelos mais asilares para uma Psiquiatria cada vez mais comunitária, a qual, a partir da psicofarmacologia e terapêuticas psicossociais foi integrando cada vez mais a doença mental no seio da sociedade. Nesta linha de tempo construiu a sua estória. Construiu a sua família, construiu o seu pequeno negócio. Gerou a sua própria riqueza, aproveitando o espaço de liberdade que considerava ser o seu.

E agora isto. Nem tem um nome que possa usar com a segurança de assegurar que transmite ao outro o que realmente sente. A perda das relações familiares, sociais e laborais implícitas neste período não cabem numa palavra. Porque a essas somam-se as incertezas da sua vida profissional, com a ameaça de que a sua pequena empresa caia como um baralho de cartas enquanto o diabo esfrega um olho. É o colapsar de um passado e um hipotecar de um futuro num buraco negro de tempo presente.

Quantos de nós vivem isto? Quando ouvimos os alertas em relação aos sintomas psicológicos que se vêem surgir, é fácil sentir que pelo menos aí estamos juntos. Ansiedade, insónias, dores no corpo, dores de barriga, temos de estar atentos a estes sinais. Porquê? Porque podem todos derivar de um único: a ansiedade. Que monstro é esse, a ansiedade, que devemos evitar? Na realidade a ansiedade é uma emoção que nos garante a sobrevivência. Porque a vida não é um mar de rosas. Inclusivamente, começa cheia de dificuldades. Não sabemos falar, muito menos caminhar, vemos mal, não sabemos sequer como dar ordens a braços e pernas de forma a sobreviver neste mundo. É a ansiedade que desencadeia o choro do bebé quando tem fome, que por sua vez vai desencadear ansiedade ao adulto cuidador de forma a que este resolva o problema. Fora de perigo, calamo-nos, serenamos e aí podemos brincar, conhecer, e finalmente dormir, serenar. Calar essa ansiedade, no caso do bebé, seria uma sentença de morte. Nunca deveríamos perder a noção do valor da ansiedade, do que se constitui como sinal de alarme e portanto oportunidade de defesa e até de comunicação. Apresenta um valor evolucionário absolutamente imprescindível. Tal como o afeto depressivo: em paradigmas experimentais de Depressão, o “choro” dos animais (confirmado pela Etologia), parece representar uma resposta de protesto, ou seja, de procura de ajuda. Com o perpetuar dos modelos experimentais de Depressão, o animal desiste de emitir as tais vocalizações que se assememelham ao choro humano. Também na Psiquiatra com os pacientes costumamos dizer: “está tão deprimido que já não chora”. Isto é, está tão doente que já não comunica a sua tristeza vital. Muitas vezes esta é transmitida a partir de dores no estômago, coração ou cabeça. Por outras palavras: a ansiedade somatizada que se apresenta agora como descarga no corpo e não como sinal de alerta para a comunicação com os outros.

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A questão é que por vezes pode haver um desequilíbrio nesse mecanismo vital básico. Nessas situações, a ansiedade não funciona como um alarme que desencadeia soluções, pode antes funcionar como uma força de bloqueio que cessa os movimentos de procura do reequilíbrio. Um dos elementos que pode danificar esse mecanismo essencial da ansiedade são as informações incongruentes advindas da realidade externa. Quando a realidade externa nos fornece elementos contraditórios, não conseguimos destacar e fixar os elementos que para nós são sinais de perigo. Ficamos ambivalentes com contradições entre sentimentos, pensamentos e vontades. E aqui a (in)tolerância à dúvida aparece na linha da frente. E a mente não gosta da dúvida. Então, daqui decorrem duas vias: a da saúde mental em que a a dúvida pode ser tolerada e a ansiedade é mantida como forma de nortear os pensamentos; ou a via do sintoma/doença mental em que a ansiedade vai crescendo cada vez mais e, na impossibilidade de se ligar e estabilizar em ideias, não norteia o pensamento. Então, do episódio que desencadeia a ansiedade não conseguimos construir uma história que integre a nossa narrativa, do nosso curso de vida. No lugar de uma narrativa, do significar dos acontecimentos, surge o sofrimento psíquico e sentimentos de confusão. No lugar do pensamento, surge o encapsulamento, a incapacidade de ser, de participar no mundo e na vida que construímos. Então, o que fica em jogo é a liberdade. A liberdade na relação com o próprio e com os outros. Aliás, para Sartre a Ansiedade no humano estava inexoravelmente ligada ao livre arbítrio e à possibilidade de escolha. Visto deste ângulo, o aumentar da prevalência destes sintomas neste momento da nossa história parece simplesmente inevitável. De facto, para a luta contra a Covid usámos a nossa arma mais preciosa – a nossa cultura. Para impedir a sobrevivência do vírus, abdicámos da nossa escola para todos, das nossas relações sociais, profissionais. Deixámos mais vulneráveis quem já se encontrava numa situação de maior vulnerabilidade, seja pelo ciclo de vida (crianças, idosos), ou pela condição social (desempregados, vínculos laborais precários). Criámos uma situação de vulnerabilidade em quem à partida não estaria numa situação de vulnerabilidade – como os pequenos e médios empresários. O que foi isto?

Então como vamos agora cuidar destes sintomas e restabelecer a realidade que conhecemos, a nossa cultura, sem estarmos invadidos por fantasmas da perda da nossa democracia? Como é que vamos constituir o tempo presente, para além destas perdas? A temporalidade é também isso mesmo, a vivência emocional de vários tempos que se entrecruzam como se um fosse para a frente e outro fosse para trás.

Curiosamente, as terapêuticas podem seguir as duas vias que destacámos acima. Uma delas – que deriva do modelo médico e que se consubstancia no paradigma cognitivo-comportamental – será a via que procura a remissão do sintoma, não valorizando o seu valor comunicacional. Aqui os recursos terapêuticos são utilizados de forma a permitir que o sujeito ignore os seus próprios sinais de alerta em relação à qualidade da relação de si próprio (na sua individualidade) com o mundo que o rodeia, com o objetivo de torná-lo funcional. Aqui procura-se preservar a capacidade do sujeito operar na realidade externa. Capacitá-lo para a vida profissional, fazê-lo seguir em frente, sem pensar.

A segunda via – de inspiração psicanalítica – explora a compreensão do sintoma, tendo em conta o seu contexto de aparecimento, coordenadas relacionais, familiares e profissionais bem como significado atribuído pelo próprio. Estão os referidos sintomas em maior ou menor continuidade com a personalidade da pessoa, face aos acontecimentos da realidade externa? É justamente a compreensão das múltiplas inter-relações destes fatores que poderá possibilitar a remissão mais completa e prolongada dos sintomas assim como um funcionamento mais harmonioso da personalidade.

Quando ouvimos os alertas em relação à sintomatologia que pode decorrer destes tempos de isolamento social imposto na batalha contra o Covid, perguntamo-nos como é que esse alerta pode estar a ser vivido. Será que pode ser vivido como algo indesejável, que tem de ser eliminado da mente e simplesmente colocar-nos funcionais de novo? Ou será que está a ser vivido como sinais de um tempo imposto que estamos com dificuldade em integrar na nossa narrativa? Porque não conseguimos integrar isto. Esta segunda via respeita mais a liberdade do ser. E o ser em liberdade questiona, reivindica, partilha, cria, mas também se angustia. E não esquece. E projecta-se no futuro a partir de uma vivência do presente onde o seu passado está contido. Então, que o estar atento ao equilíbrio psicológico e à saúde mental, que a decisão de procurar ou não uma ajuda profissional se constitua antes de mais como um ato de liberdade, e não como um movimento cristalizado de um animal acossado por detrás de uma máscara. Isto não.