É muito do Diabo ter medo de ser esquecido. Há uma maneira de querer estar ligado aos outros que é das piores coisas que podemos desejar. Sim, encontrar paz na companhia de Deus e mais ninguém é uma ideia simultaneamente bíblica e assustadora. Por isso mesmo, a santidade apavora. O santo não ganha concursos de popularidade. O santo, como os antigos costumavam dizer, era alguém ok com remeter-se à sua insignificância. Pessoas remetidas à sua insignificância aterrorizam-nos quando aí ainda não chegámos.

Tendemos a substituir a santidade pela popularidade. Se a paz com Deus deixar de ser um valor, é provável que a paz com os outros, as entidades que na falta de Deus mais nos impressionam, se torne a coisa mais sagrada que existe. Nem sequer precisamos de ensinar os nossos filhos a admirarem a paz com os outros. Eles vão crescendo e logo sofrendo as dores que aparecem quando, por alguma razão, não experimentam a paz com os outros. Em grande parte, os nossos filhos aprenderem a viver em sociedade, isto é, em paz com as pessoas, é também aprenderem a serem muito do Diabo, temendo a todo o momento serem esquecidos. Há quem lhe chame apenas socialização.

Sem que nunca precisássemos de os ensinar, os nossos filhos crescem especialistas em comportarem-se de acordo com o medo de serem esquecidos. Nessa medida, já se tornaram adultos como nós somos. Receamos, nós e eles, sermos abandonados, mal compreendidos, colocados de parte, mal vistos. De certo modo, aprendemos a viver para os outros na pior acepção que viver para os outros pode ter. Cultivámo-nos para deixar que sejam os outros a darem-nos o nosso significado, o que nos enche as tripas e o coração. Ao valorizarmos os outros assim, desvalorizamos aquilo que em nós os possa ajustadamente colocar em causa. Amamo-nos servilmente sob o pânico de sermos esquecidos no significado que os outros nos dão.

Aqui há dois anos mantive um podcast chamado “Odeio Artistas”. A premissa era promissora porque, como já por aqui tenho confessado, os nossos artistas são no geral um castigo e o conceito era confrontá-los com o facto (não tem de ser “era” porque qualquer dia posso voltar a activar aquelas conversas). Quando entrevistei os três convidados mais populares, apercebi-me de uma curiosa contradição. Ou melhor, não tinha de ser contradição mas era, sem dúvida, um tipo de paradoxo. O Ricardo Araújo Pereira, o João Miguel Tavares e o Pedro Mexia (o insigne trio do Governo Sombra) não tinham redes sociais. E, sim, considerei isso uma espécie de santidade da parte deles. Eles rejeitaram a ideia, claro, mas eu não (apesar de eles serem muito cultos, continuam a ter aquele medo meio pós-moderno da palavra santidade, como se santidade também não significasse inteireza). Não sei se é um aspecto geracional mas, desse pessoal que veio do boom dos blogues do início do milénio (a Coluna Infame vai fazer vinte anos e nós temos uma festa para fazer, Sr. Francisco Mendes da Silva!), muitos resistiram ao apelo xunga das redes sociais, e eu sinto-me mal por não fazer parte desse grupo—quero ser mais santo não revelando o meu medo de ser esquecido através das macacadas do Instagram… Enfim, orem por mim.

Mas não podemos fugir do facto de que ser lembrado também é uma coisa boa. Nas Escrituras as pessoas salvam-se por serem encontradas na memória de Deus. Uma das histórias mais bonitas que nasce da boa lembrança do Criador é a de Agar. Agar era a escrava egípcia de Sara, usada para lhe desenrascar a esterilidade. Quando os filhos que Sara podia ter eram os de Agar, Agar portou-se como superior à sua senhora (Génesis 16:4). Abraão (que na altura ainda era só Abrão) quis saltar fora da confusão e Sara humilhou a sua escrava ao ponto de ela fugir. Esbaforida no deserto, Agar é encontrada por um anjo que a instrui a regressar obediente a Sara — aquela pobre mulher ainda daria origem a um povo inteiro a partir do seu filho Ismael. A resposta dela é única e vai ao ponto de dar um nome a Deus: “tu és o Deus que vê!” O Deus que vê é o Deus que lembra e isso significa que até os mais dispensáveis, como Agar naquele momento era, podiam ser recordados. Ser salvo é ser encontrado na memória divina.

Logo, um dilema de qualquer pessoa deve ser este da memória: quando é que devo não me importar com ser esquecido e quando é que devo importar-me? Se os outros tomarem para nós o lugar de Deus, vivermos na memória e cuidado deles é uma verdadeira maldição. Mais valia perdermo-nos no deserto para mudarmos de vida. Se, pelo contrário, formos vistos por Deus, encontrados pela sua memória, até no deserto viveremos sem solidão. Em dias de contagens constantes de visualizações dos outros, vermo-nos vistos por Deus é ainda mais urgente.

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