1 Há poucos dias, um grupo de quase oitenta farmacêuticos subscreveu um manifesto público a alertar para as lacunas existentes no desenvolvimento da Residência Farmacêutica. Atendendo à normalmente discreta intervenção no espaço público destes profissionais, não deixa de ser significativo o surgimento de tal documento – acrescendo ainda mais de cem apoiantes, entre farmacêuticos das diversas áreas (a nível nacional e internacional), outros profissionais de saúde e representantes de pessoas com doença, de forma muito abrangente.

Como já tive oportunidade de escrever em outro artigo, há cerca de um ano, o tema da especialização dos farmacêuticos está em cima da mesa há seis décadas, perpassou governos e regimes, e, mesmo tendo sido o medicamento a tecnologia de saúde mais revolucionária neste período, continua a protelar-se a sua resolução efectiva. Agora, não se concede a equiparação parcial à Residência Farmacêutica apenas por causa de data ou geografia. Devemos então pensar que o SNS está a prescindir de capital humano diferenciado, por si formado, nos últimos dois anos, quando já faltavam, mesmo antes da pandemia, pelo menos 250 farmacêuticos para garantir o funcionamento mínimo dos serviços?

2 Embora a maioria dos subscritores seja da área da farmácia hospitalar, contam-se também farmacêuticos com intervenção nos cuidados de saúde primários – quando deixará de se julgar estranho que o farmacêutico esteja nos centros de saúde, à semelhança de vários países europeus? – e na área laboratorial.

Deve fazer-se menção especial a estes farmacêuticos analistas que, apesar da sua invisibilidade social, são provavelmente os profissionais de saúde mais versáteis na determinação de parâmetros laboratoriais. Devido à sua formação polivalente, cobrem todo o espectro das análises clássicas, mas também as químico-biológicas e ambientais, ou ainda as genéticas – fundamentais nos cuidados de precisão. E a validação de novos métodos analíticos passa certamente por eles. É deste perfil de conhecimento e competências que pretende o SNS abdicar?

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3 Mas a Residência Farmacêutica é apenas parte de um todo maior, a Carreira Farmacêutica. Os episódios de apresentação de escusas de responsabilidade, mais do que questão jurídica, correspondem a um posicionamento ético-deontológico perante a falta de condições para a prática de um acto profissional diferenciado, legalmente consagrado, com impacto directo na vida dos cidadãos. Perante os depauperados recursos humanos, em condições tão difíceis, nem a melhor gestão pode evitar a perda de efectividade no serviço prestado e a incapacidade em acompanhar a inovação tecnológica. A fuga para o sector privado, nomeadamente para a área da indústria farmacêutica e dos ensaios clínicos, torna-se cada vez mais frequente. Como não achar legítima a procura por um melhor futuro profissional?

4 Assim, o desenvolvimento – ou falta dele – da Carreira Farmacêutica, cujo âmbito se limita para já ao SNS, terá impacto noutras áreas. Levanta-se a questão da integração plena de outras valências da saúde pública nesta Carreira, a nível dos Serviços Regionais de Saúde, dos Laboratórios Públicos, ou das entidades reguladoras da área – a integração da especialidade de Assuntos Regulamentares na Carreira deverá ser um passo natural no médio-prazo. A própria academia terá de encarar de forma distinta a necessidade de ligação da investigação científica com a prática farmacêutica, garantindo um fluxo biunívoco de conhecimento.

Também nos sectores privado e social o desenvolvimento da Carreira pode ser um estímulo ao desenvolvimento funcional da actividade farmacêutica. A hospitalização privada, até agora essencialmente vocacionada para actividades de ambulatório, está a ser confrontada com “dores de crescimento” que implicarão o desenvolvimento de novas valências farmacêuticas, até agora muito centradas (de forma competente, diga-se) em áreas como a farmacocinética ou a farmacoeconomia. Do mesmo modo, a farmácia comunitária terá que deixar um modelo baseado em embalagens físicas de medicamentos para abraçar uma abordagem baseada no conhecimento do farmacêutico sobre o processo de uso das tecnologias de saúde, com valor acrescentado.

Paralelamente, devido ao envelhecimento crescentemente marcado da população, a intervenção farmacêutica no sector social deverá também conhecer uma transformação, apesar da renitência de muitos em perceber a mais-valia do farmacêutico neste âmbito. A necessidade de gerir as tecnologias de saúde de forma mais racional irá, tarde ou cedo, impor-se às ideias feitas, abrindo novas perspectivas para os farmacêuticos nesta área.

Mesmo a questão da especialização porá desafios a estas estruturas prestadoras de cuidados: é a própria Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) que, na interpretação feita do enquadramento legal da Residência Farmacêutica, abre a possibilidade de serem concedidas idoneidades formativas a estabelecimentos do sector privado e social. Estarão eles dispostos a agarrar a oportunidade de implementar a Residência, dando origem a uma via única de especialização à semelhança do internato médico; e a Carreira, com as devidas adaptações, investindo nos seus recursos humanos?

5 Vivemos tempos de mudança na prestação de cuidados, em que os cidadãos devem ser, efectivamente, o centro dessa atenção, com respeito pela sua autonomia e individualidade. As alterações na regulação das profissões liberais, nomeadamente no que toca ao estatuto das associações públicas profissionais, levantam desafios a que é necessário dar resposta. Para a profissão farmacêutica, é chegada a hora das escolhas. Não é mais possível fugir à necessidade de projectos de diferenciação profissional, que elevem este ofício multissecular a um novo patamar em Portugal. Haverá certamente necessidade de compromissos e adaptações, mas o essencial não pode ser posto em causa. Terão os poderes públicos a coragem de decidir apostar nos farmacêuticos, a bem do sistema de saúde? E terão os farmacêuticos a coragem de decidir apostar em si próprios, a bem dos cidadãos?