O peru é um animal estranho. Em português chama-se… peru.

Sabemos todos que, em inglês, o peru se chama turco… perdão, turkey. O que, em português, vem dar ao mesmo. Nos Estados Unidos, no thanksgiving, os nativos comem… turco, isto é, peru.

Em França chama-se dinde, redução de coq d’Inde ou galo da Índia. Em khmer, um peru diz-se moan barang, que é como quem diz galinha francesa. Já em malaio é uma galinha holandesa. E como é que os turcos chamam ao peru? Pois hindi, que significa índio…

Do português peru, o nome chegou a muitas línguas, como hindi ou urdu ou havaiano. Em bretão chama-se galinha espanhola e em japonês… schichimenchô ou ave de sete faces.

Não há outra ave no Mundo com tantos nomes diferentes.

Peru. E a que propósito vem isto, perguntarão. A verdade é que acabo de voltar do Peru, do país e não da ave, e uma vez mais, sempre que tenho oportunidade de viajar, muitas coisas me vêm à ideia. Desde logo porque, desocupando a caixa das ideias com as ideias que ocupam os portugueses como eu, quando em Portugal – o futebol e a nova vedeta o VAR, ou as pacíficas eleições para o PSD ou o estranho financiamento dos partidos –, fica nela, na caixa das ideias, espaço para reflexões profundas sobre, por exemplo, o porquê de se chamar a um país o nome de uma ave, por muito saborosa que seja.

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Bem, mas enquanto pensava nisso fui tentando conhecer o país com nome de ave de Natal. Politicamente, as coisas têm andado agitadas por aqui, com um antigo Presidente amnistiado por um Presidente que esteve à beira de deixar de o ser mas conseguiu não deixar de o ser ao fazer um acordo com um partido onde preponderam não um, mas dois filhos do tal ex-Presidente amnistiado. Confusos? Também eu, mas não gastei tempo a pensar no assunto, confesso, é um problema dos peruanos e devem ser eles a resolvê-lo.

Ir ao Peru e não conhecer Machu Picchu é como ir a Roma e não ver o Papa. Ou ir a Paris e não ver a Torre Eiffel. Ou vir a Portugal e não comer pastéis de belém. Fui a Machu Picchu e fiquei a saber duas coisas, pelo menos: não há muitos locais no Mundo mais extraordinários, pelo menos que eu conheça; e o que faz de Machu Picchu um local extraordinário é não ter sido encontrado pelos espanhóis, porque senão lá no alto da Montanha Velha teria sido erguida uma Igreja e outros edifícios cristãos sobre os templos dos Incas, como aconteceu em quase todo o lado.

Ficou quieta e parada, tomada pela vegetação, lá no alto dos seus dois mil e tal quilómetros, Pizarro e os pizarrinhos não deram por ela e quando foi descoberta, já no século XX, Pizarro já tinha morrido e ninguém se lembrou de destruir o que restava da misteriosa cidade do sol. Para nosso prazer, e deslumbramento.

O Peru é um país rico em recursos minerais. Tem gente simpática, um pouco sisuda. Tem uma importante cordilheira – os Andes – e fica a mais de dez horas de voo de Lisboa. E parece que é dos sítios onde melhor se come no Mundo (comi, bem, é certo, mas ainda não comi em todo o Mundo e o sítio onde melhor se come no Mundo, para mim, adivinhem qual é? Eu ajudo: tem pastéis de belém).

Enfim, um bom país para visitar, nem que seja para o conseguir distinguir da ave. Mas uma coisa me impressionou muito e foi um cartaz. Pequeno, colocado em vários locais e restaurantes dos bairros mais ricos. Dizia assim (sic): “Ordenança No. 384-MSI: Neste local e em todo o distrito de Santo Izidro é proibida a discriminação”. Está em espanhol, mas julgo que traduzi bem.

Ao princípio não percebi, pensei que o peru me estava a pregar partidas. Mas é verdade. A discriminação é um problema no Peru. Sendo rico, roupa de moda ou de luxo (não é o mesmo), ou vestir roupa de pobre, ser parecido com um índio – e não sendo um peru -, não é a mesma coisa no Peru. Uns entram (adivinhem quais), outros não, ou não entravam, porque felizmente parece que agora há um esforço – e ordenanças – para impedir a discriminação.

Estive numa praia privada. A areia era pisada por gente elegante, bem vestida. Havia espaço para circular. Do outro lado do pontão, a praia pública. Gente manhosa, gente ranhosa, deviam ser, porque espaço nem para se sentarem, quanto mais para circular.

Não me entendam mal. Não é só no Peru, é em muito mais sítios. Nascer do lado certo da vida continua a ser uma sorte. Ali, naquele belo país com nome de ave, milhões vivem em condições difíceis, em casas miseráveis, e contudo há recursos para que deixe de ser assim. Ali como em tantos países do resto do continente sul-americano, mas também em África e na Ásia; e na Europa, quem duvida?

Eu sei que muitos leitores têm experiências semelhantes, aqui, ali ou em qualquer parte do Mundo e que não correm a escrever artigos patéticos sobre perus; pois que me desculpem, mas por vezes dá-me uma coisa qualquer, um sobressalto, assalta-me um escrúpulo, penso em aves com nomes exóticos. E escrevo.

Enquanto os obscenamente ricos continuarem convencidos que os obscenamente pobres merecem sê-lo, o Mundo continuará um lugar obscuro e triste, e a violência dos revoltados assomará, de vez em quando, muitas vezes, contra a discriminação, contra os privilégios. Não sei, às vezes já não sei, se vale a pena continuar a lutar, porque tanto já se disse, tanto já se fez e afinal…

Ainda me surpreendo.

Ah, e quanto ao Peru, parece que alguém confundiu a galinha de Angola, chegada à Europa pela via do Império Otomano, com os verdadeiros perus, vindos das américas. E toca de chamar-lhes turcos. É bem feito.