Há duas semanas foi votada e reprovada, na Assembleia da República, a atribuição de estatuto de vítima especialmente vulnerável de violência doméstica às crianças que a vivem nas suas casas. Não devo, claro, entrar na discussão — que, entretanto, surgiu — sobre alguns aspectos jurídicos que esse estatuto traz consigo. Não pretendo evocar convenções e recomendações internacionais. Nem fazer considerações sobre os motivos políticos pelos quais ela não terá merecido a aprovação da Assembleia da República. Só quero mesmo conversar convosco acerca destas crianças. Muitas delas, como imaginam, que eu conheço bem.
Imagino que a não promulgação de um estatuto como este possa representar, aos olhos de alguns deputados, um exercício de prudência. De maneira a que não se crie mais um argumento que favoreça manipulações de natureza perversa de alguns pais, que os leve a afastar, arbitrariamente, os filhos do outro dos seus pais, com a alegação de que estarão a proteger as crianças de actos de violência de que sejam vítimas. Receio que, se foi assim, a Assembleia da República esteja a reconhecer que, diante das limitações e da lentidão dos tribunais, face à necessidade de discernirem o verdadeiro do falso numa alegação de vítima especialmente vulnerável, será melhor que esse estatuto não seja consagrado. Mas não é verdade que considerar uma criança em perigo, no contexto da violência doméstica protagonizada por um dos pais, em sua presença, só por si já a proteja. Simplesmente porque são muito raras as vezes em que um Tribunal reconhece uma criança que viva neste contexto como estando em perigo. Porque são muito raras as vezes em que a proteja do contacto com aquele dos pais que, atestadamente, protagoniza essa violência. Porque são muitas as vezes em que confia, inclusive, estas crianças à guarda destes pais, comprovadamente, violentos. E são, ainda, muitas vezes as circunstâncias em decreta guardas conjuntas e residências alteradas quando, judicialmente, se comprovou que um destes pais era violento.
Reconheço que não entendo os motivos pelos quais parece difícil compreender-se — dentro de muitos tribunais e, agora, no Parlamento — que uma criança que presencia a violência física ou a violência psicológica entre os seus pais acabe por ser uma vítima especialmente vulnerável. Oiço, demasiadas vezes, que estas crianças têm muita resiliência, como se fossem ou heróicas ou “apoucadas”, quando, na verdade, elas só tentam sobreviver; todos os dias. E os bons resultados escolares que conseguem conquistar, nestas circunstâncias — que atestam (para muitos tribunais) a forma como nada do que de violento se passe entre os pais pareça afectá-las ou comprometer o seu desenvolvimento — só são possíveis porque, vivendo quase sempre em “estado choque”, encontram na escola a única “clareira de oxigénio” onde não têm de estar em “modo de sobrevivência” o tempo todo.
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