1. A pergunta que faz o título deste artigo tem uma resposta clara: não. António Costa é um homem inteligente, perspicaz e com um elevado sentido estratégico para a política partidária — não confundir, sff, com sentido de Estado ou visão estratégica para o país. Mas, às vezes, Costa gosta que a Opinião Pública pense que não manda no PS — por muito que essa ideia, não tenha qualquer adesão à realidade.

O último exemplo dessa espécie de socialistas vs socialistas (ambos liderados por António Costa) verificou-se com a revisão do Estatuto do Ministério Público — cujas propostas de alteração vão continuar a ser discutidas esta semana no Parlamento. O Governo apresentou uma proposta na Assembleia da República que, como não podia deixar de ser, é da autoria de Francisca Van Dunem, ministra da Justiça. E que, por maioria de razão, tem o apoio do primeiro-ministro.

Trata-se de uma proposta de lei que foi aprovado pelo Governo em Agosto de 2018 e, quando entrou no Parlamento, baixou à especialidade (Comissão dos Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias). Aqui o PS, o partido liderado por António Costa (não é mais de recordar), resolveu fazer uma proposta de alteração que traduz uma visão radicalmente diferente.

Perante uma proposta equilibrada do Governo, o PS resolveu entrar numa competição com o PSD de Rui Rio de ‘mata e esfola’ contra a autonomia do Ministério Público. Os exemplos são muitos e variados (estão resumidos aqui) para sustentar uma só conclusão: PS e PSD partilham da mesma visão de um MP domesticado politicamente. Enquanto a ministra da Justiça Francisca Van Dunem não quer nada disso.

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E o que faz António Costa no meio disto? Diz que o combate à corrupção será uma prioridade da próxima legislatura. Porque desta, obviamente, não foi. E como a legislatura que está a decorrer ainda tem uns meses pela frente, nada como continuar a fazer com que o combate à corrupção não seja, de facto, uma prioridade.

2. Para azar do primeiro-ministro, e logo quando se discutia as polémicas propostas do seu partido e do PSD que levaram à segunda greve dos procuradores em menos seis meses, apareceram dois relatórios do Grupo de Estados contra a Corrupção  (GRECO) do Conselho da Europa.

O primeiro relatório diz que Portugal é o país que menos implementa as recomendações do GRECO (73%), seguindo-se a Turquia (70%), Sérvia (59%), Roménia (44%), Bélgica (42%), Grécia (40%) e Croácia (39%). Como se vê, Portugal está bem acompanhado. Os dados são de 2018, logo o escrutínio é sobre o Governo de António Costa.

Já o segundo relatório, foi conhecido esta semana, dá um panorama um pouco melhor mas ainda assim negativo. Entre 15 recomendações, seis não foram implementadas de todo, oito foram postas parcialmente em prática e apenas uma foi aplicada de forma satisfatória. Por isso mesmo, o GRECO conclui que o “atual muito baixo nível de cumprimento das recomendações permanece globalmente insatisfeitos.”

Ironia das ironias, há duas recomendações que não foram seguidas pelo Governo que ganham importância face ao que está em questão no Parlamento:

  • “O GRECO recomenda que seja garantido que as regras (…) protejam os procuradores de qualquer interferência indevida ou ilegal de dentro do sistema.” Uma recomendação que tem tudo a ver com as alterações da composição e os poderes dos Conselho Superior da Magistratura.
  • “O GRECO recomenda que o papel do Conselho Superior da Magistratura seja um garante da independência dos juízes e que o seu papel seja reforçado.”
  • Conclusão do GRECO: “(…) concluímos que os melhoramentos menores foram introduzidos”, logo os “níveis muito baixos de cumprimento  das recomendações” mantém-se como “globalmente insatisfatório”.

Tendo em conta as atuais propostas do PS e do PSD que estão a ser debatidas no Parlamento, estas conclusões não deixam de ser irónicas.

3. Daí o Presidente da República ter sentido a necessidade de apoiar o MP. E fê-lo de forma tão pública a notória que a diferença da sua narrativa para com as propostas do PS e do PSD são como a diferença entre a noite e o dia.

Mais do que as palavras de Marcelo Rebelo de Sousa, o mais importante é o significado político das mesmas: um anúncio de um veto político do Presidente da República a a qualquer proposta de lei aprovada pelo Parlamento que coloque em causa a autonomia do MP. Foi uma intervenção “cirúrgica mas brutal”, como disse este domingo Marques Mendes.

Daí o PSD já ter começado a tocar a rebate, como se viu no Expresso, admitindo que vai refazer as suas propostas — e usando como desculpa esfarrapada o facto de ter sido chumbada a sua proposta para uma maioria de membros do CSMP.

Voltando ao início. Não há paciência para o simulacro de divergências entre o Governo e o PS, como aquele que ainda continua a ser feito a propósito da revisão do Estatuto do MP. Como é óbvio, se o deputado Jorge Lacão (PS) escreve uma proposta de lei a tentar alterar pontos fulcrais do Estatuto do MP proposto pelo Governo — e que vão expressamente contra as recomendações do GRECO — é porque António Costa autorizou a mesma.

Não pode ser de outra maneira, sob pena da autoridade do primeiro-ministro ficar estilhaçada, transformando-o num líder mole — o que Costa não é.

É provável que António Costa apareça nos próximos dias em público a dizer que é o maior defensor da autonomia do MP, utilizando, como costuma fazer, o seu passado de ministro da Justiça. Tudo para dar, finalmente, ordens ao PS para retirar as suas propostas de cima da mesa e aprovar a proposta do Governo para um novo Estatuto do MP.

Veremos porque, como já disse Rui Ramos, o jogo ainda está no intervalo.