Depois do fim da Geringonça, o país parte agora para eleições. É um momento de balanços e de escolhas. Ao longo dos próximos meses, terei tempo para escrever aqui sobre o futuro e os dilemas que Portugal atravessa. Para já, interessa-me fazer um ponto da situação. Existe demasiada cacofonia no ar. Neste artigo utilizo alguns indicadores-chave que, penso, reflectem bem a situação dificílima em que o país se encontra. Para pensarmos os meses que se avizinham de forma ponderada e séria, precisamos de informação séria.

Ao escrever este artigo o meu objectivo é fazer uma dupla interpelação. Por um lado, às gerações mais velhas, gostaria que pensassem no país a caminho da miséria que estão a deixar aos vossos filhos. Os sonhos de fazer de Portugal um país Europeu esboroaram-se. Quem estiver confortável com isso, pode votar pela manutenção do status quo. Por outro lado, à minha geração, haverá ainda alternativas à emigração? Muito sinceramente, creio que não. À excepção de alguns arrivistas, que colhem as prebendas que o poder deixa cair, Portugal não é um país que valorize o mérito ou o esforço pessoal. Numa nota pessoal, durante anos, acalentei a esperança de que ainda houvesse alternativas – no fundo, não acreditava que fosse possível ao país descer tão baixo a vários níveis, como agora chegámos. Tentava contrargumentar com a minha esposa que afirmou sempre que regressar definitivamente a Portugal corresponderia a um apodrecimento profissional e intelectual. Claro que há o sol, a comida, e o aeroporto para irmos saindo de vez em quando. Nisto, como em tantas coisas, o tempo veio a dar-lhe razão.

Uma pequena nota metodológica antes da análise propriamente dita. Todos os dados utilizados abaixo provêm de organismos internacionais com reputação à prova de bala, a maior parte deles do Eurostat. A maioria das séries temporais começam em 2001 para controlar para o efeito do Euro. Por último, a série temporal termina em 2019 para não haver qualquer ruído gerado pela pandemia. Todos os dados e cálculos estão disponíveis para replicação.

A desigualdade

Para começarmos a perceber onde nos encontrarmos, olhemos, em primeiro lugar, para o índice de Gini. De forma simples, este índice permite medir o quão grande é a desigualdade dentro de cada país. A Figura 1 mostra o índice de Gini para os países da União Europeia em 2019, já com o Reino Unido de fora. O panorama é absolutamente desolador. Portugal é o 20º país mais desigual da UE. Atrás de nós temos apenas Espanha e Itália, na Europa do Sul, assim como alguns países do Leste Europeu, que ainda pagam a factura da abjecção Comunista. O Luxemburgo tem mais desigualdade do que Portugal, mas este facto deve ser posto em perspectiva dado o elevadíssimo rendimento per capita e os fluxos de investimento bancário internacional. Inúmeros países que adoptaram políticas liberais, como a Irlanda ou a Estónia, são agora menos desiguais do que Portugal. Este é apenas o primeiro indicador de como Portugal é, como dizia Adérito Sedas Nunes no seu artigo canónico, uma sociedade dualista.

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A riqueza

Em seguida, olho para o PIB per capita em paridade poder de compra em 2019. Aqui, também, Portugal está numa posição francamente má. Em 1986, quando entrou na Comunidade Europeia, Portugal era indubitavelmente o país mais pobre da Europa Ocidental. Em 2004, quando os países do Leste acederam à UE, Portugal continuava na 15ª posição. No entanto, os dados de 2019 mostram uma imagem bem diferente. A Figura 2 ilustra claramente que Portugal tem vindo a perder lugares de forma consistente, numa trajectória descendente que não augura nada de bom. Em 2019, o PIB per capita em paridade de poder de compra coloca Portugal bem lá atrás num honroso 21º lugar, com perspectiva de rapidamente sermos ultrapassados pela Polónia e mesmo pela Hungria do Sr. Órban. Portanto, mantendo a trajectória, dentro de 5 anos, seremos o 24º ou 25º mais rico da União quase a roçar o fim da tabela.

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A questão da despesa social

Ao longo dos últimos anos, o debate sobre o Estado Social tem evoluído imenso na Europa. Já em 2002, Esping-Andersen clamava pela necessidade de revisitar o paradigma do estado social. Passámos da ideia puramente assistencialista, para uma perspectiva em que o estado deve investir em funções sociais que, acima de tudo, permitam qualificar a população ao longo da vida, aumentando o capital humano, a produtividade e o bem-estar geral. As Figuras 3 e 4 fazem uma distinção central na utilização dos dinheiros públicos para o estado social. A Figura 3 agrega todas as despesas do estado social, incluindo pensões, baixas, desemprego. A Figura 4, por seu lado, mostra o investimento social em políticas de infância (incluindo creches e apoios à maternidade), políticas de educação e de treino vocacional. No fundo, a Figura 4 permite-nos isolar as políticas públicas do estado social que têm efeitos reprodutivos e que permitirão à sociedade não apenas crescer economicamente, mas também aumentar o bem-estar.

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A Figura 3 mostra Portugal num honroso 16º lugar na União Europeia, com um investimento per capita um pouco superior a 5.000 Euros. A Figura 4, pelo contrário, mostra um cenário bem diferente. Isolando as funções sociais do Estado que têm mais efeitos para o futuro, Portugal está em 22º lugar, apenas acima de França, Eslováquia, Grécia e Itália. Reparem, de resto, os países que fazem mais investimento social nestas funções do Estado e como estes se estão a posicionar para serem os mais ricos da Europa. Todos os nossos concorrentes directos estão a investir muitíssimo mais do que Portugal em políticas sociais que trazem benefícios futuros. O problema é que as políticas eleitorais não são alheias a tudo isto. Os mais idosos continuam a ser as bases de apoio fundamentais dos partidos políticos. Os incentivos eleitorais para pensar no futuro são muito poucos. Reparem que não digo que temos de deixar de pagar pensões. Seria absurdo, até porque não é um benefício, mas sim um direito, na medida em que as pessoas deram dinheiro ao Estado ao longo da vida para o receber de volta nesta altura da vida. No entanto, parecer-me-ia correcto explicar ao país, sem fantasmas, que seria mais importante investir em creches e qualificação da população jovem activa e, ao mesmo tempo, colocar uma tecto nas pensões e nas pensões de sobrevivência conjugal sob pena de, a prazo, não havendo investimento em políticas sociais correctas, não conseguirmos pagar nenhuma das duas.

A emigração

A emigração sempre foi uma marca indelével da sociedade Portuguesa. Nas primeiras duas décadas de pertença à UE, Portugal começou lentamente a tornar-se um destino de imigração, assistindo à queda da emigração. O crescimento económico e as oportunidades internas, criavam menos incentivos à emigração. Os dados mais recentes, contudo, mostram uma clara inversão da tendência. A Figura 5 mostra a evolução da emigração Portuguesa permanente entre 2000 e 2020. Os dados utilizados para a feitura desta figura provêm da PORDATA, que distingue entre emigração permanente e temporária. No início do século, Portugal tinha níveis de emigração historicamente baixos. Em 2000, registaram-se 5000 emigrantes permanentes. A crise de 2008-2009 marcou uma inflexão, atingindo um pico nos anos negros da troika, quando 85.000 Portugueses emigraram em 2014. É verdade que, nos últimos anos, a tendência de emigração tem sido de declínio. No entanto, apesar do milagre económico Português operado pela mão direita do Dr. Costa, em 2018, emigraram 31.000 Portugueses. De facto, a Figura 5 mostra que os números da emigração nunca mais recuperaram para níveis pré-troika. Fazendo uma comparação entre o primeiro mandato de José Sócrates (2005-2009) e o mandato de António Costa (2015-2019) vemos uma diferença abissal. Segundo os dados da PORDATA, no primeiro mandato de José Sócrates emigraram 57.106 Portugueses, enquanto que, no primeiro mandato de António Costa, emigraram 170.222 pessoas. Parece que houve um número considerável de Portugueses que continuaram cépticos que as vacas voam e preferiram fazer a vida noutras paragens.

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A ciência e o investimento em I&D

O investimento em ciência e tecnologia é central para o desenvolvimento de qualquer país. De resto, a Geringonça terminou com um ciclo infernal de desinvestimento, precaridade, e quebra de produção científica que marcou a estadia da troika em Portugal. Esta é a história oficial. Todavia, não é a história verdadeira. Os dados mostram um padrão completamente diferente. Segundo a PORDATA, utilizando dados nacionais e internacionais, a Geringonça realizou uma quebra do investimento em ciência. Como mostra a Tabela 1, em 2011, quando Sócrates deixou o governo, Portugal investia 0.4% do PIB em I&D, valor que era igual em 2015, no último ano de mandato de Passos Coelho. Em 2019, o governo de Costa fez o investimento em ciência cair para 0.3%. Somos, alegremente, o 24º país da Europa no investimento em Ciência e Tecnologia.

Para além da quebra relativa a que assistimos em Portugal, ao contrário da propaganda oficial, a Tabela 1 mostra ainda alguns padrões interessantes. Sem surpresa, a Alemanha é o país europeu que mais investe em I&D. A Grécia, por exemplo, subiu o seu investimento público em ciência de 0.3 para 0.7 do PIB entre 2011 e 2019. Aparentemente, a elite Grega percebeu que a receita Alemã é capaz de dar mais resultados a prazo. É certo que países como Espanha ou a Irlanda também diminuíram o investimento público em ciência. No entanto, em ambos os casos, especialmente no caso irlandês, a descida pública é muito mais do que compensada pelo investimento privado, que é, como sabemos, demonizado em Portugal.

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O salário mínimo (e o salário médio)

Durante o tempo da Geringonça o salário mínimo aumentou. Isto é um facto indesmentível e, creio, da maior importância para a imensa multidão que, infelizmente, tem de sobreviver com tão pouco. No entanto, a falta de produtividade da economia Portuguesa, assim como o seu empobrecimento relativo, faz com que o aumento do salário mínimo traga uma consequência perversa: a continuarmos a este ritmo, dentro de poucos anos, o salário mínimo estará em linha com o salário médio (sei que deveria usar o salário mediano para esta comparação, mas tive dificuldades em aceder a dados recentes). A Figura 6 mostra o salário mínimo e o salário médio nos países da UE. Portugal tem o 17º salário mínimo mais alto, assim como o 17º rendimento médio líquido mais alto. Apesar da sua crise violentíssima, estamos abaixo da Grécia, e mesmo de Malta e Chipre. Continuamos acima das economias do Leste Europeu. No entanto, o gráfico mostra uma tendência evidente: nos países mais ricos, a diferença entre salário mínimo e salário médio é substancialmente maior do que nos países mais pobres. Seguindo a tendência actual, a breve prazo, Portugal será um país em que a esmagadora maioria da população ganhará o salário mínimo. Uma política com visão de futuro percebe a necessidade de aumentar o nível do salário médio, que não é tabelado por lei, e não apenas do salário mínimo, que deveria ser recebido apenas por uma minoria da população.

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Os sete indicadores que aqui trouxe mostram bem o estado a que Portugal chegou. A esperança é inexistente. Conversar com jovens com menos de 30 anos em Portugal, neste momento, é elucidativo. A esmagadora maioria assume, com a maior tranquilidade e simplicidade, que o seu futuro passa pela Europa rica. Um país que deixa isto acontecer está condenado. Catarina Martins disse outro dia uma frase muito acertada, referenciando-se à Geringonça, que parafraseio: não está na altura de fazer autópsias. Concordo absolutamente. Não vale a pena perdermos tempo a discutir os governos de Sócrates, Passos Coelho ou mesmo da Geringonça. Todos eles representam o passado, ideias velhas, e momentos a que não queremos regressar. É necessário pensar no futuro e não ter vergonha, nem tabus, de apontar caminhos alternativos. O regime actual, tal como o conhecemos, está exangue. Quem não vir isto agora, poderá apenas vê-lo quando for tarde demais.