Perante o Covid-19, as grandes religiões (cristianismo, islão, judaísmo) reagiram, pelos menos na Europa, da mesma maneira: os clérigos e as instituições apelaram aos fiéis para seguirem as normas sanitárias  impostas pelos estados laicos, o que implica uma quase interdição da prática religiosa colectiva (missas, cultos, orações, peregrinações, grandes festas religiosas como a Páscoa, o Pessah e o Ramadão).

O argumento utilizado para convencer os fiéis foi um princípio de ética religiosa proclamado pelas três religiões: é necessário não pôr em causa a vida dos outros. É um argumento não apenas religioso, pois é também partilhado pelos não crentes. É um argumento mais da ética do que da teologia.

Houve personalidades religiosas minoritárias e conservadoras que se opuseram a esta suspensão, negando a importância da epidemia ou vendo-a como um sinal da ira de Deus.

Entre os primeiros estiveram alguns evangélicos, como o pastor Jerry Falwell Jr nos Estados Unidos, aliado de Trump e de Jair Bolsonaro no Brasil, mas também católicos conservadores (como a equipe do site Beige Salon em França) e o ministro da Saúde de Israel, o rabino ultra-ortodoxo Yaakov Litzman.

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Entre os segundos, manifestam-se alguns católicos mais radicais que veem na epidemia a expressão da ira de Deus contra o casamento homossexual ou a “deriva herética” do papa Francisco. Este clube de pessimistas também tem mullahs iranianos, imãs salafistas e alguns rabinos. Todos consideram que a prática religiosa coletiva é a melhor proteção contra a epidemia (argumento avançado entre judeus Haredims no Brooklyn como em Jerusalém e entre imãs xiitas de Qom a Mashhad).

Mas este tipo de argumento rapidamente mudou quando perceberam que muitos dos primeiros “aglomerados” de infecção eram precisamente eventos religiosos coletivos e que os bons crentes não estavam protegidos da epidemia: a devastação entre os mullahs iranianos e vários rabinos Haredim.

Em abono da verdade devemos dizer que a reunião evangélica de Mulhouse e a festa de Purim ocorreram antes da epidemia ser reconhecida como tal, e não depois, e que várias comunidades das três religiões, que primeiro ignoraram a epidemia, acabaram por aceitar a disciplina das autoridades de saúde

Mas tanto a negação da epidemia quanto o discurso apocalíptico fracassam porque a epidemia está lá e porque os falsos profetas foram vistos como ridículos, ou ainda pior como fanáticos, inclusive nas suas próprias comunidades.

As grandes instituições religiosas, por seu lado, esforçam-se para não negar a epidemia e negar também os discursos proféticos e apocalípticos.

Em França, a Conferência Episcopal, o Rabino Chefe, o Conselho Francês de Adoração Muçulmana e a Federação Protestante transmitiram de maneira inequívoca e sem reservas as instruções do governo e deram instruções para permitir que os crentes se submetessem a eles, mesmo estando perto de três festas religiosas tão importantes como a Páscoa, a Pessah e o Ramadão.

E os fiéis seguiram o conselho.

No entanto, depois da Páscoa, um desconforto inicialmente latente acabou por ser expresso abertamente, entre muitos católicos: por que manter as igrejas fechadas se os fiéis concordam em tomar precauções?

A razão é que o Estado não considera a prática religiosa como uma “necessidade essencial” que justifique a abertura de locais de culto. E a Igreja Católica percebeu com horror que esse laicismo que a Igreja respeitou e integrou se voltou contra ela, não em confronto, mas muito pior, em ignorância e indiferença para com os religiosos.

Porque não podemos ver na proibição de reuniões religiosas a fúria do secularismo francês: o governo italiano tomou as mesmas medidas, a Alemanha e a maioria dos estados europeus e americanos também.

Nesta lógica mais cultural que politica, a necessidade espiritual vem depois das outras, e colocada na mesma ordem do Yoga, da meditação, da leitura de “À Procura do Tempo Perdido”: um passatempo solitário com cada um no seu apartamento.

O ministro do Interior, Christophe Castaner, disse bem o que pensava “a oração não tem forçosamente necessidade de um lugar de encontro comunitário” (LCI, domingo, 3 de maio).

Por que não a confissão por Skype e a comunhão pela Amazon?

O desconfinamento colocou o McDonald’s antes da igreja, da mesquita ou da sinagoga; em Itália, o governo abriu os museus antes das igrejas, como se a religião viesse depois da cultura, ou pior, não tivesse nada a ver com cultura.

No entanto, não podemos suspeitar de Macron, Merkel ou Conte estarem a acertar contas com a Igreja.

O problema é mais simples e mais grave: a prática religiosa é vista, tanto pelos políticos quanto pela opinião pública, como “opcional”, individual, afetando apenas uma comunidade entre outras. Os cristãos são privados da missa, como aos fãs de futebol são privados dos jogos.

Essa indiferença é quase pior do que a perseguição, porque os governos sentem sinceramente que não estão a infringir a liberdade de religiosa, desde que se possa praticar em casa ou na internet, pior até estão os fãs de futebol que não podem mesmo ver jogos.

No entanto, a lei de 1905 (é bom que a lembremos sempre) não rejeitou a religião em privado, mas apenas regulamentou a prática religiosa na esfera pública. Reconheceu dessa forma a natureza pública e coletiva do “culto”.

Mas se a lei não mudou, o lugar da Igreja Católica na sociedade e o da religião em geral mudaram radicalmente. A sociedade não se secularizou apenas: descristianizou-se. A Igreja Católica aparece cada vez mais como uma comunidade de fé entre outras, porque o número de praticantes diminuiu muito (em torno de 5%), mas também perdeu cristãos “de nome” ou “culturais” que não se reconhecem hoje na expressão pública e visível da Igreja, veja-se “Manifesto por todos”.

Além disso, a ascensão do Islão alterou profundamente a percepção geral da religião na sociedade francesa. Num contexto de rápida descristianização desde a década de 1960, esse aumento levou a um endurecimento da normatividade secular, levada tanto pela esquerda republicana (para a qual existe uma continuidade entre o anticlericalismo do século passado quanto a crítica ao ‘Islamismo hoje’) e pelo movimento que hoje chamamos de islamofóbico, que defende uma identidade de cristianismo separada da fé e dos ensinamentos da Igreja. O espaço de visibilidade e prática religiosa diminuiu, levando todas as religiões à mesma marginalização.

Mesmo que a Igreja tenha tido muita consciência de sua menorização na sociedade, julgava-se imune ao aumento da religiofobia.

Mas agora aceitou que a polícia impedisse missas “clandestinas”, obviamente denunciadas pelos vizinhos, como se fossem “muçulmanos vulgares”!

A Igreja acreditava que sua lealdade ao secularismo republicano lhe manteria a primazia que até no protocolo de Estado lhe é concedia. Mas depois do incêndio da Notre Dame foi despojada da sua catedral, erguida em “património nacional”, a Igreja deve ver como terminada a relação especial com o Estado, e a sua redução a uma simples comunidade de consumidores de bens sagrados entre outras comunidades idênticas.

Como reage a Igreja? Precisamente apresentando-se como uma comunidade específica, a dos consumidores de bens sagrados: “queremos missa, a confissão, e comunhão”. Apela à liberdade religiosa consagrada na lei e na constituição: o direito não só da crença e da opinião, mas também da prática em assembleia coletiva.

Mas, ao reivindicar os Direitos Humanos e os Direitos das Minorias, confirma não apenas sua marginalização, mas também sua “auto-secularização”, ou seja, o registo de sua atividade no âmbito da uma associação de consumidores como as outras (encontramos este argumento recorrente: “se museus, os MacDonald’s ou os supermercados estão abertos, por que não igrejas?”)

O religioso é, portanto, categorizado e não universal. É certo que essa abordagem é a única que pode valer no Conselho de Estado, no Tribunal Europeu de Direitos Humanos, e é perfeitamente legítima e eficaz para garantir a abertura de locais de culto.

Mas é interessante notar que a Igreja nunca falou de maneira “religiosa” sobre a epidemia (mesmo que vários eclesiásticos ou filósofos católicos o façam a titulo pessoal). A Igreja fala sobre reconciliar a necessidade médica com o direito dos crentes, como se isso fosse uma abordagem religiosa da epidemia, em termos do seu significado: o que a epidemia significa para a humanidade? Isso seria inaudível.

Como resultado, a Igreja não tem um discurso universalista nem ação pastoral. Comporta-se como um sindicato dos católicos.

Artigo original: Le croyant est-il un consommateur comme un autre? 

Traduzido por Diogo Tovar (Maio de 2020)