1Os sinais que a procuradora-geral Lucília Gago tem dado são tão contraditórios que temos de perguntar: estamos mesmo a voltar ao passado socrático de um Ministério Público manietado e controlado politicamente, como foi no tempo de Fernando Pinto Monteiro?

Podemos começar por afirmar o óbvio: a nosso Estado de Direito precisa de um Ministério Público (MP) com uma forte autonomia (e independência de atuação) face ao poder político para que o sistema de freios e contra-freios próprios das democracias representativas, e no qual o poder judicial é fundamental, funcionem na sua plenitude.

Não deixa de ser estranho que uma procuradora-geral que ameaçou demitir-se apenas dois meses após a sua tomada de posse por o PS e o PSD promoverem uma “grave violação do princípio da autonomia” do MP ao quererem impor uma maioria de ‘políticos’ no Conselho Superior do Ministério Público, esteja agora a ser acusada de querer acabar com a autonomia interna dos magistrados ao transformar um parecer do Conselho Consultivo sobre as relações hierárquicas no Ministério Público numa diretiva que todos os magistrados têm de seguir.

A doutrina do parecer, que explicamos aqui em pormenor, resume-se em três pontos:

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  • todos os superiores hierárquicos (coordenadores, diretores dos DIAP’s, diretor do DCIAP, procurador-geral regional e procurador-geral da República) passam a dar ordens diretas sobre a condução de qualquer inquérito ou processo. Quer isto dizer que podem impedir ou obrigar o magistrado titular dos autos a fazer determinada diligência (busca, interceção telefónica, constituição de arguido, promoção de medidas de coação, etc.)
  • tais ordens só poderão ser desobedecidas em caso de “ordem ilegal” ou de “grave violação da consciência jurídica”. Esta última, contudo, terá de ser devidamente fundamentada pelo magistrado em causa, sob pena de sanção disciplinar.
  • o Conselho Consultivo considera que tais ordens não têm de ser registadas nos autos respetivos. Porquê?Porque “não é um ato de inquérito saber se a relação [hierárquica] funcionou ou não”, lê-se no parecer.

2 Primeiro ponto: o MP é uma magistratura hierarquizada e a lei sempre contemplou instrumentos de exercício da autoridade dos superiores hierárquicos. Isso é indiscutível e não é aí que está o problema. O que é discutível é o facto desses poderes não serem exercidos quando as circunstâncias a isso obrigam. Basta pensar no caso da busca realizada ao gabinete do ministro Mário Centeno por causa de bilhetes para um jogo de futebol. A direção do DIAP de Lisboa, a cargo da procuradora Fernanda Pêgo, deveria ter atuado previamente e nada fez quando a lei lhe dava, e dá, instrumentos para o fazer.

O principal problema do parecer do Conselho Consultivo é que coloca em causa a autonomia interna dos magistrados e faz uma rutura com uma cultura enraizada no Ministério Público que fomentava uma dialética constante entre o magistrado titular dos autos e os seus superiores hierárquicos para se encontrar um denominador comum entre a consciência jurídica do magistrado e a visão da hierarquia. Em caso de discordância insanável, o superior hierárquico tem o poder de avocar o processo, retirando-o ao titular do caso e distribuindo-o a outro procurador.

Essa cultura vai acabar — e, a meu ver, mal. Porquê? Porque ao diminuir drasticamente a autonomia interna dos magistrados a dois pontos quase impossíveis de alcançar (ordens ilegais do chefe ou violação da consciência jurídica devidamente fundamentada), acaba por afetar igualmente a autonomia externa face ao Poder Político.

Ao longo da história da magistratura foram muitos os casos em que o controlo e influência política para parar as investigações fez-se muito mais pelos titulares de cargos hierárquicos do que propriamente pela base. As certidões do processo Face Oculta que visavam José Sócrates são o expoente máximo disso mesmo.

3 A principal consequência do fim da autonomia interna também é simples de explicar: nenhum titular dos autos vai tomar decisões centrais de um inquérito sem antes ter o respaldo da hierarquia. Sendo que quanto mais mediático esse caso for, mais esse receio subirá pela cadeia acima até chegar, quando for necessário, à procuradora-geral Lucília Gago.

Neste ponto, aliás, é importante recordar que a procuradora-geral Joana Marques Vidal sempre esteve a par dos inquéritos mais relevantes, como é suposto, e nunca sentiu necessidade de exercer os seus poderes hierárquicos — mesmo quando discordou do rumo das investigações. Pelo contrário, criou condições para que a autonomia interna dos magistrados fosse respeitada.

Recordemos o caso da Operação Marquês em que, após sucessivos incumprimentos do prazo para concluir a investigação, Joana Marques Vidal criticou abertamente o procurador Rosário Teixeira, o titular dos autos, por não exercer “a direção do inquérito” como devia e chegou a abrir as portas à avocação do inquérito por parte do diretor Amadeu Guerra. As críticas fizeram parte de um despacho que foi junto aos autos em março de 2017 por se tratar de uma prorrogação do prazo de conclusão do inquérito.

Independentemente da razão formal, o facto de o despacho de Marques Vidal ter sido junto aos autos fez toda a diferença. Porque permitiu o escrutínio por parte dos advogados dos arguidos e da Opinião Pública, como aumentou a transparência da administração da Justiça e do próprio Ministério Público — uma questão que não é de somenos quando se trata de uma magistratura obrigada a seguir os princípios da legalidade e da objetividade.

A conclusão, e aqui extrapolando para o caso do parecer do Conselho Consultivo, é inevitável: se os superiores hierárquicos não forem obrigados a emitir as suas ordens por escrito e as mesmas não constarem dos autos, a opacidade e a falta de transparência aumentarão exponencialmente. Ordens orais ou dossiês secretos passarão a ser a palavra de ordem. E, se assim for, como poderão ser escrutinados?

4 Embora a procuradora-geral Lucília Gago não tenha invocado formalmente o caso de Tancos para pedir o parecer, certo é que essa foi a razão. E foi uma péssima razão. Porquê? Porque a intervenção de Albano Pinto, diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal, é precisamente um exemplo do tempo ao qual não podemos regressar.

Invocar, como Albano Pinto invocou, a “dignidade” e a “alta função” dos cargos de Marcelo e Costa para impedir a sua inquirição como testemunhas é regressar ao tempo do ‘respeitinho’ em que os procuradores pensavam bem no futuro das suas carreiras antes de incomodarem alguém. E isto tanto serve para um autarca de uma vila recôndita do distrito de Leiria, como para um membro do Governo ou um banqueiro. Definitivamente, isso é um passo atrás na evolução que o DCIAP teve desde 2012.

Por outro lado, é duplamente ridículo proibir uma inquirição por escrito e como testemunha. Primeiro porque o Presidente da República e o primeiro-ministro não eram suspeitos de nenhum crime — se o fossem, a competência para investigar seria dos serviços do MP no Supremo Tribunal de Justiça. Depois porque Marcelo e Costa ficariam precisamente mais defendidos se tivessem colaborado na descoberta da verdade na fase de inquérito.

A prova disso mesmo são as 100 perguntas que o juiz Carlos Alexandre enviou a António Costa. Ficamos a saber, por exemplo, que o primeiro-ministro achou estranho que a GNR de Loulé tivesse participado na descoberta de armas na Chamusca. E que falou diversas vezes com o Presidente da República sobre o caso de Tancos. Duas informações relevantes que não conheceríamos se o juiz de instrução não colocasse as perguntas.

5

Os sinais estão aí e não podemos ignorá-los. O primeiro sinal claro foi a não recondução de Joana Marques Vidal como procuradora-geral da República. Depois a forma como António Costa quis fazê-lo: de forma acintosa, com um seco agradecimento e ignorando as conquistas do mandato de Marques Vidal.

Como já escrevi aqui, o PS jacobino e controlador não gostou da forma como Joana Marques Vidal deu liberdade aos procuradores do DCIAP e decidiu despedi-la, invocando a questão do mandato único.

O terceiro sinal foi a proibição de Albano Pinto no caso de Tancos, contrariando as práticas do seu antecessor Amadeu Guerra. E o último sinal, para já, é esta diretiva de Lucília Gago — que a própria procuradora-geral diz que nada muda, até porque as investigações continuam.

No fundo, todos estes sinais indicam que o caminho que se fez durante o mandato de Joana Marques Vidal não é bom. Que o caminho que ajudou a credibilizar o Ministério Público e a aproximar os portugueses do sistema judiciário não era correto. Que a autonomia que foi dada aos procuradores para fazerem o seu trabalho, investigando com independência e objetividade, não é positiva.

Nenhuma destas mensagens é correta — e certamente que nenhuma delas é consentânea com uma Justiça verdadeiramente cega que não olha ao estatuto político, económico e social de quem é visado pela sua ação. Pior: sinalizam um regresso ao passado que ninguém deseja.

Esperemos que a procuradora-geral Lucília Gago, que merece o benefício da dúvida, perceba isso e corrija a mensagem que passou com a diretiva.