Não me entendam mal: José Sócrates há só um, não me preparo para sugerir que alguém esteja a seguir as mesmas pisadas ou esteja, como ele, a usar o dinheiro do “cofre da mãe”. Aquilo de que vou falar é de política – e do Governo, e do PS.
Na política devem saber ler-se os sinais, e os sinais dos últimos dias apontam numa mesma direcção: os socialistas parece que voltaram a não perceber o que significa governar sem maioria absoluta, os socialistas voltaram a dar sinais de não suportarem quem quer que os contrarie, os socialistas voltaram a portar-se mal com a Justiça e, cereja em cima deste bolo, eis que cresce a suspeita de um regresso ao passado na Procuradoria Geral da República.
Tudo isto não é ainda o socratismo – mas é pelo menos socratismo suave. O que nem nos deve surpreender pois não só não faltam socráticos no topo do poder socialista, como sobretudo o partido sempre se recusou a fazer qualquer reflexão séria sobre o que passou nesses anos negros que levaram o país à bancarrota enquanto medravam os maiores escândalos de corrupção do regime (em relação a Sócrates a única preocupação de Costa foi criar um cordão sanitário).
O primeiro sinal de que parece estarmos de novo em 2009, 2010, é o regresso de um vício de linguagem a que o país – a começar pela generalidade dos jornalistas – parece rendido: a normalização da ideia absurda das “coligações negativas”.
Esta é provavelmente uma batalha que vou travar quase sozinho, como a travei há dez anos, quando escrevi contra o triunfo da “novilíngua” de um Governo sem maioria. Não é um detalhe, é um sinal dos tempos, e bem visível nos últimos dias.
De facto, quando um partido não tem maioria na Assembleia da República e quer ser Governo tem três caminhos: ou forma uma coligação, ou firma um acordo de incidência parlamentar ou negoceia lei a lei e sujeita-se às consequências. O PS não teve maioria e escolheu governar negociando lei a lei, achando que podia facilmente intimidar os restantes partidos da oposição, pois estes necessitavam de se coligar praticamente todos para derrubar o governo socialista. De uma forma geral tem tido sucesso, mas quando não tem reage de forma histérica – como se viu por mais de uma vez ao longo da discussão deste Orçamento.
O melhor exemplo até ao momento é a votação pelos partidos da oposição de uma disposição que bloqueia a construção da linha circular do Metro em Lisboa. É uma votação que não devia surpreender ninguém. Primeiro, porque todos os partidos da oposição se opunham a essa obra, tendo-a contestado na altura própria. Depois, porque se trata da violação de um compromisso eleitoral do PS, que garantiu que não avançaria com nenhuma grande obra pública sem obter antes um consenso alargado.
Não vou discutir aqui quem tem razão, apesar de me sobrarem muito boas razões para desconfiar da opção de construir a linha circular. O ponto não é esse. O ponto é que todos os partidos que votaram aquela proposta do PAN estavam a votar de acordo com aquilo que defendem, não estavam a votar com qualquer intenção “negativa”. Porquê então usar a expressão “coligação negativa”?
A lógica mediática vesga e burra dirá que é “negativa” porque é contra-natura partidos de esquerda e de direita coincidirem numa votação só para contrariar o Governo. Como argumentei há 10 anos, na altura em que a máquina de propaganda Sócrates inventou a expressão “coligação negativa”, quando um governo não tem maioria, sobretudo quando não a tem por opção política própria (foi o PS que não quis fazer nenhum acordo para esta legislatura), é sobre esse governo que recai o ónus de construir maiorias para cada uma das suas políticas. Não é dever das oposições salvarem os governos quando se veem num aperto, bem pelo contrário.
Acontece porém que, em política, conta muito o domínio da linguagem, que no fundo é o domínio da “narrativa”. É por isso que não é neutro usar a propósito e a despropósito frases ou expressões com conotações positivas ou negativas. Estando-se distraído é fácil tomar o verdadeiro por falso ou o falso por verdadeiro, dependendo apenas da convicção colocada no discurso político.
A expressão “coligação negativa” é um exemplo típico desta forma de actuar: a partir do momento que o rótulo é colado a uma qualquer decisão, quem a tomou já está a perder. É esse o segredo da “novilíngua”, essa expressão inventada por George Orwell no seu famoso “1984”, e que associou ao de “duplopensamento”, isto é, à capacidade de utilizar as palavras de formas totalmente opostas conforme os interesses do momento.
Se na obra-prima de Orwell, Guerra é Paz e Liberdade é Escravidão, na novilíngua e no duplopensamento do tempo de Sócrates, tal como nestas ressuscitadas “coligações negativas”, aprovar é igual a rejeitar e positivo é igual a negativo. Quando as usamos estamos a diminuir o significado de democracia, estamos limitar a capacidade de pensar fora dos estreitos limites impostos pela língua de pau do comentariato oficial e estamos a considerar que o papel das oposições, num parlamento democrático, é pouco mais do que o de um verbo de encher.
Mas o mau perder socialista não se expressa apenas na manipulação da linguagem – também faz ressuscitar, mas reencarnadas em novos “animais ferozes”, as fúrias do antigo líder. De facto, como interpretar o destemperamento de Fernando Medina, habituado a pôr e dispor em Lisboa sem que ninguém lhe faça frente, mas que perdeu toda a noção de civilidade na reacção ao relatório do Tribunal de Contas onde se critica a venda de edifícios da Segurança Social à Câmara de Lisboa para promover o arrendamento acessível.
Na altura defendi, na Rádio Observador, que o destempero de Fernando Medina, além de falho de fundamento, era especialmente grave pois coincidente com o registo típico de um PS que governa como se fosse o dono disto tudo. Naquele caso concreto, de um PS que se achava mesmo dono do que não lhe pertence de todo, como o dinheiro das nossas pensões, que devia estar à guarda do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social e ali fora usado para a edilidade socialista de Lisboa fazer um brilharete.
Mas se este putativo sucessor de António Costa tem destes excessos, o seu rival no PS, Pedro Nuno Santos, hoje ministro das Infraestruturas e da Habitação, também lida mal com os pesos e contrapesos próprios de uma democracia – ou seja, também ele parece herdeiro da mesma escola socrática. Ainda por estes dias andou a pedir mudanças no regime da contratação pública (um regime revisto em 2018) por, imagine-se lá, considerar que o código deve garantir “o escrutínio e rigor nas decisões dos decisores políticos, mas sem se transformar em algemas que impeçam o Estado de fazer o seu trabalho”. Ou seja, quer as mãos mais livres. Perigo, muito perigo, sobretudo quando se gerem muitos milhões, como é o caso.
Chegamos por fim à cereja em cima de todo este bolo, ao sinal dos tempos que é porventura o mais inquietante de todos. Refiro-me às relações com a Justiça, que o PS continua a tratar de forma instrumental – como interpretar a ligeireza com que o primeiro-ministro entendeu violar o segredo de justiça para divulgar as suas respostas ao juiz Carlos Alexandre? – e preocupo-me sobretudo com o parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República que literalmente incendiou o Ministério Público.
Dir-se-á que desde a não recondução de Joana Marques Vidal como PGR que tínhamos o dever de desconfiar do que se viesse a passar com a investigação criminal em Portugal. A deliberação ontem conhecida, nas condições em que foi formulada – para saber se o primeiro-ministro e o Presidente da República podiam ter sido chamados a depor no inquérito de Tancos –, é realmente inquietante. Muitos magistrados falaram no regresso à Procuradoria dos tempos de Pinto Monteiro (ou pior), e isso é dizer tudo, pois Pinto Monteiro foi um dos anjos da guarda de José Sócrates.
Não sendo jurista nem conhecendo em detalhe estes processos, há na deliberação um detalhe que fere a minha sensibilidade – se quiserem que faz tocar os meus sinais de alarme. Não é os magistrados receberem instruções da sua hierarquia – é essas instruções não poderem constar dos processos, isto é, de passar a existir uma opacidade sobre quem decidiu o quê no processo de investigação de um crime. Ora isto significa que os superiores hierárquicos podem dar ordens concretas aos procuradores fora dos autos, passando a ser difícil que tais sejam escrutinadas pelas partes dos processo ou pela opinião pública.
Não é normal, ninguém pode considerar normal.
Quer tudo isto dizer que estamos de regresso aos tempos do socratismo? Ainda não, se bem que os sinais inquietantes não se esgotem naqueles que aqui elenquei (um dia talvez tenha de falar de novo sobre “claustrofobia democrática”, pois já estivemos mais longe de a ela regressar). Mas que já vivemos em tempos de socratismo suave, disso não me restam grandes dúvidas.
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