Para aqueles que já nasceram depois de 1974, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) é algo com que sempre conviveram. Os que nasceram antes, bem sabem que se na época anterior fossem pobres, o seu direito a tratamentos médicos dignos ou a medicamentos dependia, na melhor das hipóteses, da caridade alheia. Uma das linhas essenciais dos governos europeus democráticos do pós-guerra (a que chegámos tarde), fossem eles da corrente democrata-cristã ou da social-democracia, foi substituir a caridade contingente e humilhante por uma política de redistribuição de rendimentos, que permitisse ao Estado financiar serviços públicos de utilização generalizada, de modo gratuito ou com preço reduzido. Entre estas medidas mais significativas estão, por exemplo, a escola pública, o passe social e, claro, o SNS.

Um dos benefícios que o SNS concede a todos os cidadãos, muitas vezes esquecido, é o preço dos medicamentos. Seria incomportável, mesmo para a classe média, quanto mais para a classe com rendimentos baixos, pagar os medicamentos ao preço que os laboratórios os venderiam ao público. Só o desconto obtido por via do acordo do Estado com os fornecedores permite que esse custo seja mais baixo para todos os abrangidos pelo SNS. Mas aqui importa sublinhar, que quando cada cidadão compra os medicamentos a preço reduzido, esse benefício só formalmente lhe é conferido pelo Estado. Para os cidadãos que pagam IRS, é um modo do Estado lhes devolver parte do que pagaram. Para os cidadãos que não pagam IRS, esse benefício está a ser-lhes possível, por via dos impostos pagos pelos outros concidadãos. O Estado não dá a ninguém algo que não tenha antes recebido de alguém. A forma como o Estado agora o faz, é que é diferente: operou-se a substituição da caridade humilhante pela conquista civilizacional que é a redistribuição dos rendimentos através do imposto progressivo.

O SNS, como qualquer outra actividade específica, pode ser visto quer pelos olhos de quem o gere e organiza, quer pelos olhos de quem é utente. Não vamos aqui opinar sobre a primeira visão, pois não possuímos todas as informações e competências para tal. Limitar-nos-emos a avaliar o SNS pelos olhos do utente.

O que, no essencial, qualquer pessoa necessita do SNS, para além da medicação, são consultas, exames, meios de diagnóstico, cirurgias, internamento e emergência médica. Passemos ao estado de cada uma das situações (antes da pandemia, claro).

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Consultas: a marcação de uma consulta de especialidade no SNS – não é de agora – sempre foi uma completa impossibilidade. Pela agenda do médico, marcarão a consulta para um ou dois anos depois. Se for muito insistente no seu pedido e o funcionário não tiver uma cara de pau, talvez lhe diga para aparecer num determinado dia, como se fosse a uma “urgência” e talvez o médico o atenda. Mas sem compromisso. Todos os que nos estão a ler sabem que é exactamente assim que acontece ou nunca precisaram de agendar esse tipo de consulta no SNS.

Exames e meios de diagnóstico: irá provavelmente fazê-los em entidade particular. Irá ao médico do SNS apenas para trazer a proverbial “credencial”. Mas ainda assim, como o Estado é muito relapso a pagar aos seus fornecedores, corre o risco de algumas entidades não lhe quererem fazer esse exame, a não ser que pague.

Cirurgias: à excepção das doenças oncológicas ou casos de extrema gravidade, em tempo útil e decente terá de a fazer numa entidade privada. Neste caso, ou tem a dita “credencial” do SNS ou terá de a pagar.

Emergência Médica: é a única área onde o atendimento é pontual. Mas aqui, pois se é um serviço de emergência, que de outro modo poderia ser?

Qual é, então, o panorama do SNS aos olhos do utente? É notoriamente deficiente, em muitos casos mau.

E se falarmos de outros aspectos não clínicos, a paisagem ainda piora. As instalações de muitos hospitais e centros de saúde encontram-se degradadas, desde o conforto ao mobiliário, aos sanitários. E isso não ocorre apenas desde o” desinvestimento da troika”. Já era assim, sempre foi assim no passado e não se percebe porquê, salvo por desconsideração pelo utente.

O atendimento administrativo aos utentes é frequentemente pouco profissional e nada atencioso (é diferente, para melhor, com os médicos e enfermeiros, felizmente), parecendo que o sujeito atendedor – funcionário público – atrás do vidrinho está a fazer algum favor a quem a ele se dirige.

O retorno às 35 horas do horário de trabalho foi uma medida inapropriada, adoptada para satisfazer as exigências de alguns partidos políticos, que não representam eleitoralmente mais de 10% da população. De facto, os funcionários públicos do back office sempre trabalharam (realmente) apenas as 35 horas. O aumento do horário no tempo da troika resultou tão só na sua obrigação de maior permanência no serviço, sem qualquer resultado em produtividade. Ao invés, o pessoal das frentes de trabalho (médicos, enfermeiros e assistentes), esses sempre trabalharam mais de 35 horas. A diferença, é que antes da reversão da medida da troika, o Estado só pagava horas extraordinárias após as 40 horas, agora paga-as a partir das 35 h. No entanto, quando o tal exame médico que o SNS não faz porque não tem meios, ele é pedido a uma entidade privada e vai ser realizado por um empregado dessa entidade, que, vejam bem, trabalha 40 horas. Quem conseguir explicar isto, faça o favor.

Em conclusão, na perspetiva do utente, ainda que o SNS seja em muitas valências uma mera realidade virtual, é óbvio que é melhor que continue a existir do que a alternativa, que seria um sistema de seguros, que a maioria dos portugueses não poderia suportar. Portanto, entre algo que funciona mal e algo que não existe, quando se trata de vidas, ainda assim, é melhor a primeira opção.

Mas exactamente porque o SNS é em demasiadas situações uma realidade virtual, como as que atrás referimos, os portugueses que podem, acumulam na sua despesa o pagamento de seguros individuais de saúde com o pagamento do IRS, imposto este que é a principal fonte de financiamento do SNS. Isto é, pagam duas vezes o mesmo serviço. Ou seja, um serviço para o qual são obrigados a pagar via IRS e só usam em condições excepcionais, ou quando têm sorte, e outro que pagam diretamente a uma seguradora, para terem acesso a uma consulta, exame ou tratamento de estomatologia, oftalmologia, cardiologia, etc., etc.. Uma situação que se poderia classificar de anedótica, não fosse o assunto sério.

A ideia de que aquilo que está escrito num papel – objecto que ainda aceita tudo o que lá se põe – corresponde à realidade, é uma característica endémica dos governos e das entidades públicas: se o Centro de Saúde ou Hospital XPTO, tem no seu quadro dois oftalmologistas, então a oftalmologia está assegurada aos cidadãos. Mesmo que esses oftalmologistas só existam exactamente nisso, no papel. O facto é que o SNS custa 11 mil milhões de euros (valor de 2019, pré-pandemia) dos impostos dos portugueses. Seguramente, era possível fazer melhor com este dinheiro, sendo certo que qualquer solução passa por gerir bem e não por colocar mais dinheiro dos impostos em cima de dinheiro mal utilizado.

A história diz-nos que uma mentira dita muitas vezes acaba por ser tomada por verdade. O SNS nem isso consegue. Na verdade, é apenas uma ilusão.