No séc. XIII a.C., no Egipto, Moisés foi largado no Nilo. Resgatado pela filha do Faraó, virá a libertar o Povo de Israel e a conduzi-lo à Terra Prometida.

Cerca de 780 a.C., no Lácio, Rómulo, juntamente com o seu gémeo Remo, foi deixado no Tibre. Criado por uma loba, virá a fundar a Cidade de Roma.

Na década de 30 do século passado, em Krypton, Kal-El foi cuspido para a Terra. Adoptado por uma família de agricultores do Kansas, virá a salvar a humanidade por diversas vezes.

Há 15 dias, em Lisboa, Salvador foi abandonado num caixote de lixo nas traseiras do Lux. Salvo por dois sem-abrigo, é com expectativa que se aguardam as façanhas que este rapaz irá protagonizar. De que forma é que Salvador, na peugada de outros bebés enjeitados, marcará a sua era?

Para já, ameaça ultrapassá-los a todos em protagonismo: enquanto Moisés, Rómulo e o Super-Homem tiveram de esperar até serem adultos para alcançarem alguma notoriedade, Salvador ainda nem um mês tem e já faz a diferença. Nomeadamente, no SNS da Margem Sul, ao dar esperança aos pais de crianças doentes, depois do fecho das Urgências Pediátricas no Hospital Garcia de Orta. Desde que Salvador foi encontrado que as pessoas sabem que, se tiverem uma emergência com um filho, em vez de o levarem a um Hospital, devem jogá-lo de imediato no ecoponto mais próximo. Ao ser achado por um sem-abrigo que chama o INEM, acaba por ser atendido mais depressa e em melhores condições. E, de brinde, ainda recebe a visita de um político. Salvador pode ser o herói que vai revolucionar o Serviço Nacional de Saúde. O Governo que pegue já no seu exemplo e substitua todas as Urgências Pediátricas do país por 300 ou 400 contentores de lixo. É uma grande ideia disruptiva. No fundo, trata-se de pensar fora da caixa a partir de uma pessoa que foi enfiada numa caixa.

Para ser justo, reconheça-se que o Governo não está de braços cruzados à espera que o SNS seja salvo apenas por bebés abandonados. Não, o Ministério da Saúde também tem ideias próprias. Aliás, prepara-se para aplicar uma: obrigar os jovens médicos a ficarem no SNS. À partida parece um bocadinho esquizofrénico, porque é o mesmo Governo que dificulta o acesso de portugueses ao SNS, a querer forçar portugueses a estarem no SNS, mas é uma estupenda medida. Assim que terminam a especialidade, os médicos são capturados pelo Estado, que funciona como uma espécie de cola Araldite que, em vez de colar cientistas ao tecto, cola médicos a hospitais públicos. Resolve-se assim o problema de falta de especialistas no SNS. Vai haver muitos mais disponíveis para os utentes. Quer dizer, tirando pneumologistas. Esses vão continuar a escassear, uma vez que estarão ocupados a tratar os colegas que não conseguem respirar por causa das coleiras que o Governo lhes põe ao pescoço.

António Costa é, de facto, um PM muito diferente do seu antecessor. Enquanto Passos Coelho incitava trabalhadores portugueses a emigrarem, Costa quer impedi-los de se ausentarem do seu código postal, quanto mais sair do país. O SNS é agora a Servidão Nacional de Saúde.

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Esta necessidade de preencher à força postos de trabalho no Estado diz-nos duas coisas. Primeiro, e isto é bizarro, que os médicos são pessoas que gostam de trabalhar em condições aceitáveis e serem justamente remunerados por isso — sim, é com este tipo de mesquinhez que o Governo tem de lidar. Segundo, que há poucos familiares de Carlos César a tirar medicina.

Agora, o Governo que não se iluda. Não chega prender médicos ao SNS. Há que complementar esta medida com outras, mais apelativas, para cativar os clínicos. Por exemplo, mudar-lhes a farda para um tipo de roupa que os faça identificarem-se mais com o seu trabalho. Devem largar a bata branca e passar a usar a fato-de-macaco cor de laranja.

Só não percebi ainda é como vai o Governo buscar pessoas para o Estado e obrigá-las a trabalhar, quando, como se viu naquela ideia de premiar os funcionários públicos que não faltam, não demonstra capacidade de obrigar a trabalhar os que já lá estão.

Enfim, no meu tempo, de entre todas as profissões relacionadas com a medicina, a que fazia parte do imaginário sexual era a de enfermeira. Pelos vistos, isso mudou. Agora, o profissional de saúde com quem mais gente parece querer fazer amor é o médico.