É oficial. Quando no mesmo dia, esta quinta-feira, a diretora-geral do FMI, Christine Lagarde, considera que a saída da Grécia da zona euro é “uma possibilidade” e o vice-presidente do BCE, Vítor Constâncio, não vai mais longe do que dizer que tem a “convicção pessoal” de que a Grécia não sairá do euro, então é porque essa possibilidade é mesmo real.

Como não tenho feitio para ser hipócrita, vou directo ao assunto: a saída da Grécia da zona euro pode ser a melhor solução para a actual crise, pode revelar-se, no médio prazo, o melhor caminho para a Grécia e é quase certamente o melhor que podia suceder à União Europeia. Por pelo menos sete motivos diferentes:

1. É muito provável que seja melhor para a Grécia

Se a Grécia saísse do Euro, os primeiros meses, talvez os primeiros anos, seriam terríveis. O regresso do dracma acarretaria uma enorme desvalorização da moeda e o padrão de vida do país caíria brutalmente. Pelo menos é essa a minha convicção, a da maioria dos economistas e, creio, a da maioria dos gregos. Mas, no médio prazo, a Grécia teria mais possibilidades de recuperar do que continuando no euro, porque voltaria a ter soberania monetária, voltaria a poder desvalorizar a sua moeda quando sentisse necessidade disso e deixaria de tentar o impossível: transformar-se numa economia semelhante à alemã, isto é, capaz de viver sem inflação e com uma moeda forte. Eu sei que o sonho dos criadores do euro era que os países habituados a terem uma moeda fraca passassem para o paradigma, mais estável e sólido, de terem uma moeda tão forte como o velho marco alemão. Mas como Vítor Bento mostrou no seu livro “Euro forte, euro fraco”, a moeda única procurou conciliar duas culturas e dois tipos de consensos sociais profundamente diferentes e virtualmente irreconciliáveis. É que não basta ter uma só moeda e um só banco central para que uma economia como a grega se torne uma economia como as do norte da Europa. Só faltou a Vítor Bento, porventura, tirar a conclusão dessa demonstração, mas a realidade pode agora encarregar-se disso. De resto, até fortíssimos opositores às políticas seguidas pela União Europeia nos últimos anos parecem comecar a defender, ou pelo menos a aceitar, essa ideia, como sucede com Paul Krugman. Como escreveu esta semana, “seria certamente pavoroso para Grécia, pelo menos no início”, mas daqui por um ou dois anos o Grexit pode ser um sucesso: “Suponham que um dracma fortemente desvalorizado acabaria a atrair enchentes de ingleses adoradores de cerveja para o mar Jónico, e que a Grécia começava a recuperar. Isso haveria de encorajar os que desafiam noutros países as políticas de austeridade e de desvalorização interna”. Mesmo pensando eu, que me lembro bem da vinda do FMI em 1983/85 e da inflação a 30%, que a desvalorização externa não é mais justa nem mais benéfica do que a desvalorização interna, deixo-vos na mesma o argumento de Krugman, já que porventura o choque da adopção de um dracma enfraquecido é mesmo a única esperança, a médio prazo, para economias como a grega.

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2. Era melhor para a democracia grega

Os gregos fizeram, nas últimas eleições, uma escolha política que, como todas as escolhas políticas, tem consequências. Querem seguir um caminho diferente daquele que foi o escolhido pelos seus parceiros europeus, e daquele que outras escolhas democráticas na Europa contrariam: querem ser financiados sem fazerem reformas. Estão no seu direito – isto é, estão no direito de recusar as reformas que os credores exigem como condição de financiamento. Já parece menos legítimo que exijam ao mesmo tempo que as escolhas democráticas de outros povos europeus, da grande Alemanha à pequena Eslovénia, não sejam também respeitadas. Com moeda própria o eleitorado grego recuperaria, para o bem e para o mal, parte da soberania que o seu país perdeu. E faria as suas escolhas democráticas em conformidade. Mais, e porventura mais essencial: para dar o passo de sair do euro, os gregos deviam voltar a ser consultados. Não devemos ter medo de um referendo, mesmo organizado por Tsipras. Até pode acontecer que, no fim do dia, os eleitores prefiram escolher deixar de ter “linhas vermelhas” por troca por permanecerem no euro. Mas nessa altura fá-lo-ão sabendo, sem ambiguidades, que, como diz o nosso povo, não é possível ter ao mesmo tempo “sol na eira e chuva no nabal”.

3. Era melhor para a democracia europeia

A crise das dívidas soberanas está a mostrar todos os limites da construção democrática europeia. Está a demonstrar como ainda não somos um só espaço com uma só opinião pública, uma igual capacidade de discutir em conjunto o nosso destino comum e de nos revermos nas decisões dos organismos supranacionais que nos governam sem real consentimento dos povos. A possibilidade de um povo sair da zona euro abalaria esta construção que tem muito mais de utópica e dirigista do que de democrática. Representaria uma forma de devolução de soberania a um povo e um exemplo para os outros. E permitiria recolocar o debate político em muitos países em termos mais saudáveis, tornando mais claras as consequências das propostas populistas e dando mais espaço de manobra aos partidos democráticos que têm tido a responsabilidade de governar mas se sentem cada vez mais prisioneiros de uma camisa de forças que acaba por representar uma limitação à real liberdade de escolha dos eleitorados. Não se escolhem cores diferentes, escolhem-se tons diferentes da mesma cor, e isso é pobre numa democracia.

4. Era melhor para corrigir a ideia de que a União Europeia é como uma bicicleta

Este ponto é uma consequência directa do anterior. A obsessão de Bruxelas e de grande parte das elites europeias é que a “integração” tem sempre de ser maior, mais profunda, mais completa. Na famosa expressão de Jacques Delors, a União Europeia, para funcionar, tem de ser “como uma bicicleta”, tem de se estar sempre a pedalar para não cair. Esta formulação sintetiza todos os perigos de uma construção utópica, finalista e dirigista, e contraria o são princípio de que, em política, se deve tolerar a tentativa, o erro e a correcção de trajectória. Há muito que defendo que, na construção europeia, não pode ser um automóvel só com mudanças para a frente, tem de ter também marcha-atrás. Uma saída da Grécia do euro é uma boa oportunidade para isso acontecer. Mais: essa saída deveria levar à correcção da norma, que considero ditatorial, que não prevê que se possa sair do euro sem sair da União Europeia, isto quando na União Europeia há países que não estão no euro, e nunca estarão, nos tempos mais próximos, na moeda única. Mais ainda: a necessidade de negociar com o Reino Unido antes do referendo que aí vai ser convocado devia obrigar os líderes europeus a olharem com mais realismo para os tratados, perceberem que estes têm de permitir aquilo que me parece razoável qualquer povo exigir: que não existam apenas transferências de soberania a favor de Bruxelas, que possam existir devoluções de soberania a favor das velhas nações europeias. Não é preciso estar de acordo com os pedidos concretos do Reino Unido para achar que essa evolução será sempre mais saudável do que correr o risco de fazer crescer os descontentamentos anti-europeus até ao limite da implosão.

5. Era melhor para se perceberem os limites da utopia da moeda única

Outro ponto que decorre dos anteriores. Todas as soluções que têm sido propostas e trabalhadas para ultrapassar crises como a actual passam sempre por mais integração – mas não por mais democracia e uma maior capacidade de os povos fazerem as suas escolhas. O primeiro critério para sabermos se um regime é ou não democrático, não é o de existirem eleições livres – é o de dessas eleições livres poderem resultar mudanças pacíficas de lideranças e de políticas. Na Europa do euro isso não é possível e pode ser ainda menos possível no futuro. Eu, por exemplo, defendo os princípios do “pacto orçamental”, mas sou contra a sua imposição pelo centro à periferia. E aquilo que verdadeiramente me preocupa é que ninguém saiba como responder à mais elementar pergunta de um cidadão: quero afastar estas lideranças europeias, quero outras políticas, em quem devo votar sabendo que o meu voto realmente pode contar? Mais: é este tipo de construção centralizada que torna quase indistinguíveis os partidos centrais que está a abrir caminho aos partidos extremistas, à direita e à esquerda. Uma Grécia fora do euro também ajudaria a quebrar este ciclo infernal, obrigando os líderes europeus a saírem do debate sobre “as imperfeições da construção do euro” para um debate mais alargado sobre “as impossibilidades de uma utopia chamada euro”. Assim poderíamos falar de remédios reais em vez de discutir apenas novos (e grandiosos) “saltos em frente”. Por mim, imagens como essa só me lembram os desastres da China maoista e do seu trágico “Grande Salto em Frente”…

6. Era melhor até para os que defendem mais integração europeia

O maior activo da construção europeia é a paz que trouxe ao Velho Continente, uma paz mais duradoura do que a que conhecemos em toda a nossa antiquíssima história. Permitir a saída de um país do euro, ajudá-lo a concretizá-la, deixá-lo escolher com mais liberdade (e mais consciência das consequências) o seu caminho, é não só uma forma de preservar esse activo como de contrariar a erosão daquilo que o tornou possível: a adesão dos cidadãos europeus ao projecto da UE. Se, por causa da Grécia, tivermos problemas em Espanha (de recusa da dívida, por exemplo) ou na Alemanha (de recusa de mais ajudas, o que já esteve mais longe de acontecer), então deixaremos de estar perante uma doença circunscrita, mas face a uma gangrena que pode contaminar todo o corpo. Nessa altura é capaz de ser tarde demais não só para salvar o euro, como a União Europeia, como estas maravilhosas décadas de paz e de sã convivência. Já estivemos mais longe de isso acontecer.

7. Era melhor para evitar problemas maiores no futuro

Eu sei que ninguém verdadeiramente sabe até que ponto um Grexit contagiaria os mercados. Há hoje a convicção de que o euro está mais bem defendido. Há hoje a esperança que mesmo um país numa situação de tão grande fragilidade e endividamento como Portugal poderia aguentar o choque sem danos de maior. Mas não faltam cassandras a dizer que tudo isso não são senão ilusões. Seja lá como for, manter a Grécia no euro à custa do incumprimento das regras do euro é não só uma repetição dos erros do passado – o país nunca devia ter sido autorizado a juntar-se à moeda única –, como um sinal enviado a todos os que gostariam de seguir pelo mesmo caminho. É uma traição a portugueses, espanhóis e irlandeses, mas também ao esforço de líderes socialistas como Renzi e Valls. É abrir caminho a um problema muito maior no futuro. Quando a decisão de deixar cair do Lehman Brothers provocou a crise financeira mundial, muitos defenderam que tinha sido um erro dramático. Na verdade, foi a boa decisão. Primeiro, porque o banco tivera a possibilidade de aceitar uma proposta de solução privada, porventura dolorosa e humilhante, mas recusara-a pensando que o Estado lhe daria a mão. Não deu. E nesse dia percebemos que, ao fazê-lo, destapou um problema que não teria deixado de se tornar mais e mais grave se se quisesse “dar sempre a mão”. A situação da Grécia não é muito diferente. Sendo que a escolha também é dela. Tem é de perceber que terá de fazê-la sem contar eternamente com o dinheiro dos outros – até porque ajudas comunitárias foi coisa que, nos últimos 35 anos, não lhe faltaram, pois ninguém as recebeu em tão enorme volume.

Admito que mesmo depois destes sete argumentos a ideia de uma saída da Grécia do euro ainda pareça chocante. Mas todos sabemos que antes das escolhas, é muito frequente qualquer das opções parecer-nos chocante, ou mesmo intolerável. O que não é sinónimo de, como escolhas, elas serem inevitáveis.