Toda a gente se espantou ao ver o PCP e o BE votarem um orçamento de austeridade, o que quer dizer que toda a gente se espantará quando o PCP e o BE votarem as medidas adicionais, logo que a execução orçamental se despistar na curva dos cenários optimistas.

É curioso: o comentário nacional acreditou mesmo que a cruzada da nova maioria contra o anterior governo tinha por razão de ser a austeridade imposta pela bancarrota de 2011. O problema nunca foi a austeridade, que o PS já praticara em boa escala entre 2010 e 2011. O problema era outro: o facto de serem o PSD e o CDS que estavam no governo.

Aquilo que define o PS, o PCP e o BE não é a preocupação com as vítimas da austeridade ou com os “mais desfavorecidos”, mas o facto de serem partidos que fizeram dos dependentes do Estado as suas bases de apoio. Não quero com isto dizer que o PSD e o CDS também não utilizem o poder do Estado para dar empregos e fazer favores. Mas no PSD e no CDS, há quem julgue (e também há quem não julgue) que é possível gerar votos garantindo a propriedade privada e a liberdade de iniciativa dos cidadãos, e que esse seria até o melhor meio de o país aproveitar os mercados globais. Nada disto é necessariamente de direita: em França, é o PS quem neste momento tenta adaptar a sociedade à “globalização”. Mas no PS português, há cada vez menos gente a pensar assim, e no PCP e no BE nunca houve. A operação política de Outubro não visou reverter a austeridade, mas reocupar o Estado, com dois fins: defender ou refazer clientelas, e reestabelecer uma cultura de restrição da propriedade e da iniciativa dos cidadãos.

Entretanto, o PCP acautelou os seus sindicatos contra privatizações, e o PS pôde começar a repovoar o aparelho de Estado. Tudo o mais é negociável com a Comissão Europeia. O governo e a sua maioria têm sido acusados de dar com uma mão e tirar com a outra, mas o que importa nessa ginástica não é quanto ganham as pessoas, mas que ganhem por vontade do poder político: o rendimento de cada cidadão não deve depender do seu esforço, mas da sua relação com o governo. O PS, PCP e BE nada têm contra quem ganha muito, desde que ganhe muito no Estado ou através do Estado. Banqueiros e empresários disponíveis para “parcerias” nunca terão dificuldades.

Este orçamento não é “eleitoralista”, no sentido de pressupor eleições para breve. As eleições não são um objectivo próximo, porque as eleições dividiriam os partidos da maioria. Neste momento, não interessam a ninguém, por ainda não ser claro quem beneficiará delas. O principal propósito político neste momento é outro, como se percebeu da entrevista de Augusto Santos Silva: não é a “unidade da esquerda”, mas compor a maioria com um parceiro de direita, como o Syriza fez na Grécia com o partido de Panos Kammenos. O ideal seria despedaçar o PSD, até por forma a prevenir o desenvolvimento de uma alternativa.

A dependência dos cidadãos em relação ao Estado significa, em Portugal, a dependência do Estado em relação à Europa. Mas o governo e a sua maioria estão tranquilos: julgam que, dentro de certos limites de défice, a UE os há de tolerar, como tolera o Syriza na Grécia. Por isso, tudo é para os actuais governantes uma questão de convencerem os portugueses de que uma sociedade pobre e envelhecida não tem outra opção, a não ser a dependência, o respeitinho, e a vassalagem, e que, como era antigamente costume em Portugal, só “radicais” e “traidores à pátria” poderão pensar o contrário.

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