1. O Miguel havia de gostar daquele pequeno ramo de rosas deixado solitariamente sobre o imenso tampo negro do piano. Gostava de coisas belas, como aquele ramo cor de rosa, destoando ali, sozinho e quase implorativo, de outras rosas e ramos que havia na sala. Não sei que teria ele dito do pianista melancolicamente inclinado sobre o teclado, dedilhando coisas tristes, o Miguel e eu nunca falávamos de música. Eu sabia que as suas “moradas” eram outras e intuía, intuí sempre, que o melhor era que fosse ele a decidir a que morada iríamos ter quando nos víamos. E vimo-nos durante muito tempo e muita vida, tanta vida.

E apreciaria sobretudo aquele ruído de fundo, um vozear baixo que perpassava de sala em sala, sinal de gente e de tributo, e ele adorava uma coisa e outra, e graças a Deus não disfarçava. Gostava de si e, como tal, que os outros também gostassem. Tinha razão. Apetecia gostar dele, naturalmente, como quem respira, era uma coisa assente. (Até há pouco tempo Mário Soares, que não lhe resistia, metia-se num carro e ia visitá-lo todos os meses a sua casa.)

O Miguel era um homem de amigos e de fidelidades, coisa não tão comum e gostava-se sim, daquela ternura á flor da pele, com que ele nos era fiel. Da sua convicção, do humor que usava como quem fuma, da generosidade impoluta de tentações ou interesses, da atenção, aí sim interessada, com que radiografava a natureza humana, da inoxidável amabilidade. E por sobre tudo isto e antes disto, da verve, da cintilação, da inteligência, da vocação do belo. Ah, e da conversa que se enrolava e desenrolava, “dia fora, noite dentro” (expressão dele que nunca esqueci e muito emprego). Serões infindáveis nos sofás das nossas respectivas casas, refazendo o mundo; diálogos igualmente infindáveis, ternos, cúmplices, acesos, concordantes ou discordantes, à mesa de restaurantes, sempre os mesmos; dias alegres na sua casa da Foz onde cheira sempre a maresia e na outra, encarrapitada no verde do Alto Minho, ou então nas brumas do “meu” Oeste, entre as árvores. Com os nossos comuns amigos, os mesmos, quase sempre, era como com os restaurantes.

Sentada ontem numa cadeira muito perto dele, pus-me a pensar que a única consolação que me restava agora que alguém fechara até a eternidade essa porta sempre aberta entre nós, era o que eu o tinha “aproveitado”. Aproveitado sim, a palavra vem- me a calhar, pois foi o que fiz: fruí, vivi, desfrutei dessa coisa magnifica que foi a companhia do Miguel e sempre levada por um fiozinho condutor, um perene mas resistente, resiliente, traço de união entre ele e eu, que foi a sua espantosa, e por isso talvez indefinível, curiosidade. O Miguel nunca desistia de querer saber, de querer ver, de querer ler, de querer ouvir, de querer estar, interferir, intervir, compreender, alcançar. De dizer. Ele e a sua voz. Uma espécie de assinatura que deixou em cada uma dessas muitas moradas feitas de leis, de escrita, de política, de intervenção cívica.

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Circulava pela literatura e as artes plásticas, com igual talento e vocação e, em casa, perdia-se entre estantes repletas, pilhas de livros pelo chão, quadros até ao tecto em absolutamente todas as dependências, severos dossiers em equilíbrio instável na secretária, papeis espalhados por onde fosse, num caos tremendamente sedutor e parecido com ele. E depois havia os lugares, os seus lugares. Livrarias, bibliotecas, cenáculos, tertúlias, galerias e, claro, fóruns. Fóruns onde fossem precisas ideias, iniciativas, propostas, novas coisas, outras coisas, lá estava ele. Ou porque fosse o autor da ideia, ou porque era absolutamente impensável não o desafiarem, consultarem, auscultarem. Vaidoso? Não. Apreciava (muito) que o ouvissem, gostava (muito) que gostassem dele.

A vida gostou, nós também, o mundo também. E a Belicha gostou ainda mais.

Mas a verdade é que Miguel Veiga fez da sua interpretação da cidadania uma certa forma de vida. A palavra surge-nos por vezes contaminada por indevidos usos, mas o Miguel “ocupou-a” e honrou-a em nome do Porto. Uma paixão, a sua grande paixão. Portugal para ele cabia inteiro, norte e sul, leste, oeste, dentro do Porto. Como se estivesse de serviço e estava, pois sabia-se herdeiro e continuador de uma história da liberdade que o Porto inscreveu na História de Portugal.

Discutíamos ambos política e fazíamo-lo incansavelmente. Irritada eu por vezes com certas polcas que ele dançava e eu não dançava, ou quando desacertávamos o passo, ele para um lado, eu para o outro, mas que importância se o Miguel se entretinha com gozo e gosto naquele jogo e se ainda por cima era tolerante e bom jogador?

Julgo porém e julgo muito sinceramente que nada teria sido exactamente assim nem talvez igual, se ao seu lado não tivesse estado a Belicha, a sua dulcíssima, delicadíssima, discreta, mas tão forte mulher (que felizmente ele nos deixou). E a Leonor, neta muito amada em quem pusera toda a ilusão. Uma ilusão que ele guardara só para a Leonor pois o Miguel sabia — e sabia que eu sabia — que isso das ilusões ou é conversa fiada ou coisa que não se recomenda por aí além.

2. Ali sentada muito perto dele, dou-me conta de quanto ele teria apreciado também o impecável aprumo da guarda de honra dos bombeiros que nas suas vistosas fardas de gala, se foram revezando ao longo de muitas horas, como sentinelas amigas, para nunca o deixar só. Mas do que me dou sobretudo conta é de como o Miguel levou com ele uma parte considerável da minha vida. Essa, tão cheia, tão viva, tão interessante, tão animada, que partilhei com ele, ao longo de tantos, tantos anos felizes.

Uma despedida de si, querido Miguel, que de certo modo também foi de mim.