Por causa da decisão de Donald Trump de retirar os Estados Unidos do Acordo de Paris, desde o princípio do mês li umas valentes centenas de páginas sobre a controvérsia do “aquecimento global”. Tinha, é claro, já lido várias coisas ao longo dos anos, mas nos últimos quinze dias não fiz praticamente outra coisa. Li gente que defende a ortodoxia do IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change), isto é, que defende que o aquecimento global tem origem humana, antropogénica, gente que, admitindo razões para preocupação, é céptica relativamente aos métodos e aos resultados do IPCC e finalmente gente que pura e simplesmente nega a existência do problema. E procurei fazê-lo tendo em atenção os vários planos em que o debate se joga: científico, económico, político, etc.

Não o fiz certamente para mendigar uma certeza qualquer. Para certezas basta ler as dezenas de artigos de opinião que apareceram nos jornais portugueses nos dias consecutivos à decisão de Trump, todos eles produtos de mentes incalculavelmente mais informadas do que a minha e invariavelmente indignadas com a boçalidade do Presidente dos Estados Unidos. No Jornal de Notícias, Pedro Silva Pereira, antigo ministro de Sócrates e actual eurodeputado, decretou em título que, por causa de Trump, este fora “O pior Dia da Criança de sempre”. E António Costa, à saída de uma escola em Santarém, lamentou-se: “É pena o Presidente Trump não ter frequentado esta escola e saber o que estes meninos quando saírem da escola já sabem”. Não, os meus objectivos foram bem mais modestos: tentar perceber o peso e a dimensão dos argumentos esgrimidos, o que está muito aquém da possibilidade de formar um juízo sólido.

Não é, note-se, que não tenha nenhuma opinião na matéria. O espírito inclina-se sempre para algum lado, e a perfeita indiferença é impossível. Se me apontassem uma pistola à cabeça e me obrigassem a dizer algo, lá me sairia: a questão é uma questão preocupante, embora o catastrofismo do IPCC seja deslocado; é eminentemente verosímil que, a par de razões não-humanas (a paleoclimatologia mostra a existência de épocas em que as temperaturas foram maiores do que as actuais, como o chamado “Período medieval quente”, entre sensivelmente 900 e 1300), haja elementos antropogénicos no aumento das temperaturas; e é necessário, medindo os riscos, estabelecer prioridades no combate aos perigos, sem obedecer a raciocínios que vejam as coisas a partir do modelo do “tudo ou nada”. Isso seria o que eu diria, provavelmente com as pernas a tremer, se me apontassem uma pistola à cabeça. Mas não teria, obviamente, peso algum. É mais profícuo e mais seguro ficarmo-nos pela atenção aos argumentos, sem procurar projectar neles persuasões íntimas.

E a regra aqui, como em todos os casos onde domina a incerteza cognitiva e onde não há demonstrações indisputáveis, é procurar pensar por si mesmo sem cair no egoísmo lógico, isto é, na convicção de sermos, contra tudo e todos, detentores da verdade. Aristóteles já recomendava, nestas situações, que se prestasse atenção ao juízo da totalidade dos homens, ou da maior parte deles, ou dos mais sábios. Isto é, dito de outra maneira, que, na incerteza da verdade, buscássemos a plausibilidade e a verosimilhança nas opiniões dos humanos.

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O problema na controvérsia em torno do aquecimento global é que a passionalidade já presente em todas as controvérsias científicas se encontra redobrada pelo facto de esta se ter tornado, provavelmente por razões inevitáveis, uma controvérsia indistinguivelmente política. E, consequentemente, o consenso que é buscado dirige-se menos à universalidade objectiva, assente em provas, do que à universalidade subjectiva, assente em persuasões disfarçadas de prova. O que polui muito, é caso para dizer, os debates.

Em nenhum lugar isso se vê melhor do que na relação do IPCC (uma organização inter-governamental criada pelas Nações Unidas em 1988 e máxima estrutura organizadora do consenso em torno das teses defendidas, entre outros, por Al Gore) com os seus críticos, muito diferentes, de resto, entre si. Não é normal que a busca da verdade se encontre controlada por uma organização política desde o início. A ciência progride pelo conflito de hipóteses múltiplas e pela luta entre elas. E os cientistas devem procurar testar as suas hipóteses sem temer as críticas. Haverá idealização nesta imagem da ciência, promovida, entre outros, por Karl Popper? Provavelmente, mas é uma idealização que não nos afasta excessivamente da realidade e funciona, a meu ver, como uma exigência de racionalidade. Ora, o IPCC vai exactamente no sentido inverso deste preceito, em larga medida por causa da sua natureza política. Provas?

Os críticos, alguns deles antigos colaboradores que reagiram contra a abusiva utilização política das suas investigações nos relatórios do IPCC, são sistematicamente demonizados. Há mesmo, sinal dos tempos, blogs defensores das teses do IPCC que se aplicam unicamente a esse exercício (os chamados “negacionistas” também os possuem). O exemplo mais elucidativo é o do ambientalista dinamarquês Bjorn Lomborg, autor, entre outros, do livro The Skeptical Environmentalist, traduzido para inglês em 2001 (o original dinamarquês é de 1998). Lomborg (que aceita a natureza antropogénica do aquecimento global) foi não só criticado, o que é óptimo e está na ordem das coisas, como vilipendiado, alvo de ataques ad hominem e mesmo agredido fisicamente. O método utilizado no combate a Lomborg não é a excepção: é a regra. Poderia citar uma longa lista de cientistas de nomeada, muitos dos quais, como disse, antigos colaboradores do IPCC, que foram objecto de tratamento semelhante.

Houve igualmente vários escândalos provocados por fraudes científicas de elementos ligados ao IPCC, todas elas motivadas pelo desejo de forçar os dados no sentido de os fazer colar com a ortodoxia, silenciando tudo o que neles pudesse ir contra ela. Dois exemplos. O chamado Climategate (2009), em que vários emails oriundos de um centro de estudos sediado na Universidade de East Anglia revelaram exactamente o grau de manipulação dos resultados a que o IPCC se dedica. Ou o episódio do gráfico em forma de stick de hockey (2001), em que o IPCC utilizou de forma emblemática um gráfico elaborado por Michael E. Mann em 1999, que apresentava a evolução da temperatura mundial desde o ano 1000 sob a forma de uma linha horizontal contínua com uma súbita subida a partir de 1900 (daí a expressão hockey stick), eliminando assim o “Período medieval quente” e outras épocas de características semelhantes e estabelecendo de forma aparentemente indiscutível a natureza exclusivamente antropogénica do aquecimento global. O problema, como foi depois demonstrado, é que o gráfico havia sido criado através de critérios manifestamente contrários à probidade científica.

Poderia continuar com vários exemplos de práticas deste tipo por parte do IPCC, mas limito-me a algo de muito geral: o recalcamento voluntário de todo e qualquer aspecto de incerteza em matérias de evolução climática. Como notou, entre outros, a climatologista americana Judith Curry, os relatórios do IPCC tipicamente ignoram o “monstro da incerteza” intensamente presente em quaisquer considerações relativas ao clima. Para voltar de novo a Karl Popper, por causa do título de um célebre ensaio seu, tratam as nuvens como se fossem relógios. E fazer isso corresponde a um erro científico.

Tudo isto não prova certamente que o consenso promovido pelo IPCC esteja errado. Mas prova indubitavelmente que estamos em presença de uma controvérsia científica anómala, e anómala em primeiro lugar pelo sobre-investimento político que a caracteriza. Não é legítimo passar este facto em silêncio quando se fala de aquecimento global. Um certo grau de prudência é requerido.

Agora, a acabar, duas notas, uma especulativa e outra prática. A especulativa. Aquando do terramoto de Lisboa de 1755, duas explicações surgiram para o desastre. Uma apontava-o como castigo divino para os nossos pecados. Outra via nele o resultado de certos fenómenos propriamente naturais. A controvérsia sobre o aquecimento global introduz em primeiro plano um elemento que figurava como agente menor na explicação religiosa do terramoto: o homem. Deus desapareceu e a natureza é, por definição, além de inocente, intrinsecamente bondosa. Ela limita-se a responder à acção humana, um tema vulgar neste tipo de literatura. Não se trata de algo, obviamente, que se deva completamente rejeitar (há infelizmente suficientes catástrofes ecológicas com origem humana para tornar absurda tal rejeição). Pelo contrário, muito pelo contrário. Mas há também um exagero possível em tais pronunciamentos, um exagero que os aparenta à explicação religiosa do terramoto: uma explicação religiosa sem Deus, mas mantendo o pecado.

A nota prática. Ver em Trump, a respeito da sua atitude face ao Acordo de Paris (a propósito: muito do que se diz repete o que foi dito sobre George W. Bush quando, em 2001, tomou atitude semelhante em relação ao Protocolo de Quioto), uma espécie de Gog e Magog reunidos numa só pessoa, vindo ainda por cima a seguir ao Salvador, vulgo Barack Obama, é declaradamente exagerado e também não destituído de conotações religiosas. O melhor era mesmo começarmos a falar mais racionalmente. Era melhor para a ciência: a descoberta da verdade encontrar-se-ia melhor assegurada. E era melhor para a política: a cooperação entre os Estados nestas matérias assentaria em bases mais eficazes.