O estabelecimento de protecção laboral para artistas e trabalhadores da cultura tem vindo a ser discutido desde o séc. XX, culminando na Recomendação do Estatuto do Artista da UNESCO de 1980. As profissões artísticas, devido à sua especificidade, necessitam de um sistema particularmente configurado para que os bens e serviços culturais que produzem permaneçam com o perfil de bens com dupla dimensão, económica e simbólica, significando esta última que todos os bens e serviços têm uma carga artística, espiritual, estética e representativa de uma cultura.

A Recomendação é tão relevante hoje como em 1980, considerando as pressões sobre os direitos sociais e económicos e o impacto da tecnologia digital no trabalho dos artistas. Com a adopção da Convenção de 2005 sobre a Protecção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, um novo impulso foi dado à Recomendação de 1980. Ao reconhecer o papel central dos artistas na criação e produção de uma diversidade de expressões culturais, a Convenção proporciona um novo quadro normativo para a implementação e monitoramento da Recomendação.

Em pleno séc. XXI uma boa parte das actividades culturais sofre de carências sistémicas, originadas na liberalização excessiva dos mercados de trabalho, nomeadamente na alocação do risco inerente da actividade aos seus profissionais. O risco das profissões culturais é grande e dependente da fragilidade do mercado de bens culturais. A capacidade de uma nova produção ou obra de arte criar um público escapa, em parte, ao controlo do seu criador.  Por exemplo, está estimado que, por média, uma empresa cinematográfica em dez filmes tem um blockbuster, que em geral cobre os prejuízos dos outros nove. A nível individual, a responsabilidade do tempo necessário à criação, de escolha de nicho de mercado, de divulgação e captação de público ou comprador, de ser notado no meio e integrado numa “bolsa” referencial, ou na obtenção de financiamento, recai exclusivamente sobre o criador. Se a obra não vende, se o público não adere ou se o apoio não for conseguido, a justificação é individual e o prejuízo para o profissional ou grupo de profissionais pode inviabilizar a continuidade do trabalho.

Em princípio, terá já de haver um apoio, a segurança de financiamento inicial, uma encomenda para se montar um espectáculo ou produzir uma obra. Os apoios são conseguidos através de concursos onde são aprovados uma média de 10% a 15% dos projectos totais. Mas o rácio pode ser menor. No concurso para fundos culturais do IFCD – International Fund for Cultural Diversity – um fundo internacional da UNESCO, têm sido aprovados para financiamento menos de 5% dos projectos.

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O financiamento nas artes alavanca o trabalho artístico, mas distorce o mercado. Normalmente quem tem um projecto financiado, apresenta-o depois nas salas ou junto de entidades que são co-produtoras. Na realidade a maioria destas entidades, muitas vezes públicas, recebe o espectáculo (ou outro projecto) gratuitamente, alocando alguns serviços que já fazem parte da sua gestão corrente, como divulgação ou cedência de sala de ensaios e espaços. As entidades preferem, obviamente, receber propostas já financiadas, praticamente a custo zero, ou outros que à partida assegurem público. Fica de fora qualquer tentativa de agendamento e contratualização directa por parte dos artistas, pois as entidades já não estão na disposição de financiar propostas culturais quando as podem ter gratuitamente.

A Comissão Europeia, no documento CDCULT(2010)LD, descreve que com a excepção de algumas estrelas e daqueles que trabalham para instituições de forma permanente, os profissionais das artes têm dificuldade em viver do seu trabalho. Os valores pagos sofrem de grandes flutuações e podem ser muito baixos, mesmo em países da UE, pelo que é difícil sobreviver só da arte e cultura. Os profissionais têm de conjugar várias actividades para se conseguirem manter. Existe, hoje em dia, uma prática de aceder a serviços culturais de forma graciosa, em que os profissionais não são remunerados a favor de divulgação ou outro aspecto convidativo. Na realidade, o trabalho artístico sofre de desvalorização sistemática junto de entidades credenciadas, que mais depressa pagam os seguranças, serviços administrativos, divulgação e outros colaboradores que os artistas e o seu trabalho. A justa remuneração neste documento teria de surgir como fundamental e incontornável.

É necessário reconhecer, criar uma consciência social, de que as profissões artísticas são exigentes e consomem bastante tempo de preparação. A época do esvaziamento valorativo da actividade artística baseado numa óptica bourdiniana está ultrapassada. Nas artes cria-se valor através de um sistema de aperfeiçoamento, de ir mais além, de entrar no mercado internacional competitivo, com trabalho de aperfeiçoamento consistente desenvolvido no estúdio, em casa, no atelier, na sala de ensaios ou noutro local. Não é uma actividade intermitente, em que se dedica umas horas ou se trabalha umas semanas sim e outras não, ou sazonal, praticada quando chega ao Verão e se participa nuns festivais. Está estimado que um músico terá de ensaiar 10 mil horas para atingir o nível aceitável e 25 mil horas para se tornar um profissional. O trabalho é constante, as apresentações são pontuais, mais ou menos numerosas, assim como a integração em projectos e grupos profissionais que pode ser mais ou menos permanente. Tem de se encarar a actividade dos profissionais da cultura como uma opção de actividade em geral de grande dificuldade, muito específica e tendencialmente exercitada em permanência.

Na maioria dos países europeus, os trabalhadores assalariados da cultura são protegidos por leis laborais vigentes. No entanto, estas não alcançam os independentes, constituídos como profissionais liberais (códigos CIRS) ou empresários em nome individual (códigos CAE).  A falta de um estatuto legal limita ou inibe o acesso à protecção social num cenário onde as doenças profissionais não são sequer consideradas.

A nível de relação laboral, só há dois cenários: trabalhador assalariado ou independente (ACE, 2018). Mas quer o profissional das artes seja assalariado ou independente/ individual, mantém sempre uma relação de subordinação face à entidade ou pessoa que lhe encomenda o projecto ou o trabalho, como está explícito no documento CDCULT(2010)LD. Esta situação corresponde a uma relação laboral e os trabalhadores têm direito a uma remuneração justa e protecção social no trabalho.

A situação de desequilíbrio de forças entre entidade empregadora e trabalhador independente faz com que o empregador determine como irá remunerar e estabelecer a relação contratual.

Em Portugal, num total de 61.916 de empresas de actividades culturais e criativas, 60.898 são microempresas, mais de 98%. Nas artes do espectáculo e literárias, de um total de 23.889 empresas, 23.847 são microempresas, ou seja, 99,8%.

As 23.847 microempresas têm ao seu serviço 25.045 empregados, numa média de 1,05 trabalhaor(es) por empresa. Isto significa que a maioria das empresas são em nome individual, numa interpretação livre dos serviços de finanças que estipulam que a partir do momento que o indivíduo independente abre actividade para passar recibos verdes, é empresário em nome individual. Existe um universo completamente fragmentado, de milhares de microempresas individuais, ou quase, e de profissionais flutuantes entre projectos, encomendas e produções.

Sabemos da investigação académica que nas artes do espectáculo, especialmente no teatro, há um manancial de gente que integra projectos e espectáculos sucessivamente, ou de forma intermitente, associando o trabalho do teatro ao do audiovisual. Em música, à parte das grandes orquestras com assalariados, os grupos formais ou informais têm grande variabilidade, desde junção espontânea até grupos consistentes ao longo do tempo, sempre dependentes da oferta de agendamento de concertos. A colaboração freelance com grupos estáveis, por exemplo como reforços de orquestra, acontece recorrentemente, numa variação livre que conjuga a unidade com outras unidades e estruturas.

Querer tipificar, neste Estatuto, todas as conjugações de colaboração e contratação parece ser um exercício ilusório. Qualquer tipo de colaboração deve ter um contrato escrito, independentemente da duração, mesmo que seja uma colaboração para um único espectáculo ou acontecimento, abolindo os recibos verdes por completo. A colaboração deve ser sempre onerosa e a protecção social poderia ser calculada tendo em conta o tempo de preparação/criação para o acontecimento ou espectáculo.

Numa análise transversal do documento, percebe-se que este pressupõe sempre a contratação entre o independente e a estrutura consolidada. No universo cultural do país, apresentado pelos dados estatísticos mais recentes, a relação entre números de independentes e empresas que não sejam unitárias é totalmente desequilibrada. Isto significa que não há lugar a negociação de tipo de contrato, pois o empregador poderá sempre pressionar no sentido que lhe seja mais favorável. Isto significa também que, face ao exposto anteriormente, quando uma empresa unitária, um artista independente, tem um projecto apoiado e aglomera todos os trabalhadores independentes que sejam necessários ao projecto, a sua microempresa continua a não ter capacidade para grandes exercícios financeiros ou de sustentação de custas e observâncias contratuais. A maioria dos apoios não contempla encargos com o pessoal contratado e, dependendo da gestão interna de cada micro-unidade, este pode ser um exercício difícil de sustentar. Dado o elevado número de independentes, esta é uma questão pertinente que deveria ser abordada no Estatuto. O presente Estatuto tipifica só relações laborais entre um médio ou grande organismo e o trabalhador.

É de louvar a existência do Fundo Especial de Segurança Social dos Profissionais da Área da Cultura (Artigo 39º). No entanto as contribuições para o Fundo por parte de entidades empregadoras e trabalhadores podem inviabilizar a produção criativa, pelo anteriormente exposto. As taxas contributivas para a segurança social passam a ser mais altas que qualquer taxa em vigor neste momento (Artigo49º), quer para trabalhadores independentes quer para trabalhadores por conta de outrem, quando o regime aplicado à Cultura deveria ser de menor taxação que o regime geral. Os recibos verdes não são abolidos e podem ser usados discricionariamente pelos organismos na contratualização com profissionais liberais, ou empresários em nome individual, que, como já vimos, configuram 98% do tecido socioeconómico na cultura.

Este Estatuto, que esteve em consulta LEX até 17-06-2021, apresenta uma série de medidas pensadas sob uma perspectiva da contratação por parte de grandes organismos públicos e não vem resolver alguns dos problemas que assolam os profissionais, como os recibos verdes, precariedade ou sobre-taxação. O Estatuto falha no seu propósito principal que seria de criar condições para o desenvolvimento de um sector cultural dinâmico e equilibrado e potenciar a respectiva criatividade e criação artística. Esperemos que na consulta com artistas e entidades culturais o presente Estatuto venha a ser aperfeiçoado no futuro e se torne num instrumento legal capaz.