Por estranho que pareça o “Young Johnny, Lisboa & Luanda, Anos 60” lembra-me a revista Cruzeiro que, jovem adolescente, lia nas férias passadas na segunda metade de Setembro, em Santo Tirso, na quinta de uns amigos que eram assinantes da revista.

Explico porquê: a Cruzeiro tinha uma página literária chamada “Arquivos Implacáveis”, da responsabilidade do crítico João Condé, com uma epígrafe do poeta Carlos Drummond de Andrade que dizia: “Se um dia eu rasgasse meus versos, por desencanto ou nojo da poesia, não estaria certo da sua extinção: restariam os Arquivos Implacáveis de João Condé”.

Também, se um dia, os arquivos, os registos, os servidores informáticos sobre os anos 60 por qualquer cataclismo se extinguissem a memória da década não desapareceria de todo: ficava o livro do João van Zeller!

Capa e contracapa

É um livro surpreendente a vários títulos.

Em primeiro lugar porque é gigantesco de informação. São mais de quinhentas páginas de mancha densa, com imensas imagens, revelando uma prodigiosa memória, enormes e bem organizados arquivos pessoais e uma trabalhosa pesquisa de documentos e fotografias.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Diante do leitor desfilam acontecimentos, lugares, sítios, quintas, casas, paisagens, praias, lojas, filmes, livros, discos, cafés, tertúlias, discotecas, cabarets, dancings, programas de rádio e de televisão e, sobretudo, pessoas. Pelos meus cálculos, o índice onomástico lista mais de 1600 pessoas que se cruzaram ou foram amigos do João van Zeller: é obra!

Mas o livro é também surpreendente porque é um retrato da história da década que é objecto de atenta referência e análise. Tanto a história do mundo, nesse tempo de viragem e de tensão com o agudizar da guerra-fria, mas também de crescimento económico no ocidente com uma classe média emergente e consumista. E de Portugal, com as sequelas do prelúdio da crise do regime em 58, o início da guerra em África que afinal ajudaria a reforçar o consulado do Doutor Salazar e o advento da breve primavera marcelista.

Surpreendente também porque o Autor escreve, por vezes, virtualmente deitado no divã do psicanalista, discorrendo, sem rodeios, sobre dúvidas, angústias, erros, ilusões, contradições e os conflitos interiores, éticos e religiosos, que lhe afligiam a alma e, depois, o modo (ou os modos) como foi formando a sua personalidade e o seu carácter. E também as paixões – uma séria – e paixonetas mais ou menos passageiras.

Surpreendente, finalmente, pela transparência e pela generosidade.

A transparência, por exemplo, quando refere as dificuldades da Família em arcar com os seus estudos em Lisboa. Mas também as raízes dos valores e cito: “…no Porto, os meus pais, com os óbvios sacrifícios que faziam para educar os filhos me criaram as fundamentais raízes para lutar e ganhar. Em Lisboa essas raízes foram fertilizadas pelo sentido da vida real”.

A generosidade porque no infindável número de pessoas que vai conhecendo – mais de mil – não há nunca apreciações negativas. Apenas uma é mencionada pela inicial N. e mesmo essa é tratada com benevolência…

Outra também identificada por uma inicial – C. – é-o por cautela de discrição: foi a tal paixão “assumida até às profundezas da alma” e que “imobilizava o [Autor] para manifestar o que [o] atormentava, incapaz de exprimir o que importava a quem amava do mais fundo do coração”.

Creio que informação densa, mais de mil pessoas, a descoberta de Lisboa e o sortilégio de África e o encantamento do Brasil, a história de uma década prodigiosa, múltiplos exercícios de peregrinação interior são razões de sobra, para ler e saborear este livro mesmo para quem recusa a curiosidade do “voyeur” ou do leitor das colunas sociais. Livro escrito com a leveza de estilo, o rigor dos factos e a opinião directa (esteja-se ou não de acordo), artes que o João van Zeller aprendeu a cultivar na sua faceta de jornalista e cronista.

Ainda não mencionei a política. Ora, logo no início, e para tornar clara a sua relação com a política, João van Zeller recorda a insistente recomendação dos Pais: “Não queriam que me metesse na política, era o que imploravam ou exigiam, nas suas cartas. Também não queriam que eu gastasse mais dinheiro do que aquele que me davam”.

E se seguiu, como bom filho, esta recomendação não deixou de ser um espectador atento, em particular num tempo de profundas mudanças em Portugal e no mundo, como foi o que experienciou nos anos que relata no seu livro. E como diz João van Zeller com “uma visão não pasteurizada do que na realidade se passava” (elegante maneira de dizer sem censura) que o seu trabalho na secção de Imprensa Estrangeira do SNI e depois no CITA, em Angola lhe permitiam acesso a jornais e revistas estrangeiros e o contacto com escritores, jornalistas e até agentes secretos que visitavam o nosso País. As suas análises são, assim, um ponto de partida para olharmos de novo para História, para a revisitar com a distância e a liberdade que o tempo (e a idade) hoje nos concedem.

Difícil de classificar, este livro porque não é apenas autobiográfico nem estritamente memorialístico, nem história, nem crónica.

É o relato vivo da experiência de sucessivas descobertas, de novas realidades, novas pessoas e de novos ambientes e o confronto com o moldar da personalidade quando se tem 20 anos e uma saudável alegria de viver.

Com uma franqueza e sinceridade, quase tocante, como quando salta do conhecimento e crescente admiração pela “fé colossal” do Padre António Vaz Pinto para, na secção seguinte, descrever a iniciação na Lisboa “By night” do Bico Dourado e do Maxim’s… e outros lugares de outros cultos.

Eis, pois, em síntese, um livro:

  • Surpreendente e caleidoscópico
  • Divertido e sério
  • Bem-humorado e franco
  • Analítico e panorâmico

Ponto de partida, repito, para múltiplas reflexões sobre dez anos cruciais e que abriram caminhos tão diversos e tão inovadores. Mais do que fotografia, a fixação da imagem da memória é a revelação, a vertigem encantatória da descoberta do mundo e da vida que o Autor nos concede e nos propõe com enorme abertura e vivacidade.

Em suma, uma leitura estimulante e simultaneamente criativa e inspiradora.

João van Zeller com Emílio Rui Vilar

O livro “Young Johnny, Lisboa & Luanda Anos 60”, de João van Zeller, foi apresentado a 13 de outubro no Hotel Palácio, no Estoril – e a 16 de novembro na Biblioteca Municipal Almeida Garrett, no Palácio de Cristal, no Porto, com comentários de Rui Moreira, Presidente da Câmara Municipal do Porto, e de Emílio Rui Vilar, com a moderação do jornalista Júlio Magalhães.

O livro já tinha sido lançado dia 13 de outubro no Hotel Palácio, no Estoril, com a apresentação do embaixador Marcello Mathias (autor do prefácio) e do administrador da Fundação Calouste Gulbenkian e curador da Fundação Francisco Manuel dos Santos, Eduardo Marçal Grilo, contando com a moderação do jornalista Henrique Monteiro.