Subitamente, o traumatismo passou a ser “um tema” em muitas plataformas digitais. Em particular, o traumatismo infantil. E a forma tem vindo a ser banalizado sugere que, talvez mais por “necessidade” do que por curiosidade, uma questão como essa não seja, de facto, ridícula. Ou, até, mesmo insignificante. E que talvez toque em muitos, muitos de nós.

À parte da perspectiva original com que a psicanálise trouxe a noção de traumatismo para a opinião pública, poderemos, hoje, concebê-lo como uma “nódoa difícil” no crescimento. A que corresponde um episódio, uma sucessão de acontecimentos, uma relação cheia de arestas ou muito enviesada que, quando foram vividos, representaram a exposição a uma dor grande. Mesmo, violenta. Que passou a ocupar um lugar-cativo na nossa memória. Que nos “persegue”, por dentro, para onde quer que possamos ir. E que, considerando quem os poderá ter protagonizado, pode ter um impacto tão grande que pode, inclusive, condicionar-nos vida fora. Levando-nos ao medo. Inquinando a esperança com a desconfiança. O amor com a tristeza. Ou a pulsão de vida com a insegurança.

É verdade que a infância não se faz, para a maioria de nós, sobretudo, de traumatismos. O que, tragicamente, não acontece a muitas outras pessoas. Mas, também nós, já teremos levado a que outras pessoas que se confiaram aos nossos cuidados, se poderão ter magoado muito connosco. Seja como for – hoje, felizmente, muito menos – todos teremos as nossas “nódoas difíceis”. Que, quando as vivemos, intuímos como qualquer coisa que nos doeu. Muito! E que, depois de as termos vivido em bruto, o tempo foi ajudando a configurar muitos dos pormenores que as compuseram. Como se uma imagem difusa fosse ganhando focagem e pormenores e que, com a sua nitidez, muitos anos depois, se percebesse melhor.

Como todas os episódios muito importantes, um traumatismo não se apaga da memória. Nunca se apaga! Esbate-se, quando muito. Porque a sua presença é uma espécie de “seguro de vida” que nos salvaguarda. De forma a que nos leve a evitar situações semelhantes, no futuro.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Acontece que nem sempre de traumatismos infantis se compõe o nosso desenvolvimento. Em muitas alturas, as relações amorosas expõem-nos, elas próprias, a experiências traumáticas. Que, uma vez mais, quando se dão, nos condicionam e nos conduzem ao medo.

A questão mais sensível que um traumatismo nos traz passa, sobretudo, pela forma como ele deixa de impor em nós a sua presença. Fazer por ignorar a sua preponderância dentro de nós leva a que, quanto mais se faz por ignorar a sua preponderância, mais ele nos “persiga”. Capitular à sua presença representa deixarmo-nos carcomir pela forma como se impõe em nós. Olá-lho nos olhos, “desmontá-lo” peça a peça e procurar noutras pessoas os caminhos com que ele se “cicatrize” e se esbata, talvez seja o atalho mais seguro.

Seja como for, o traumatismo não é uma ficção nas nossas vidas. E tivessem as pessoas noção do impacto dos seus actos pela vida fora de uma criança e poupá-la-iam, seguramente, a muitos dos sofrimentos que, vida adentro, as prejudicaram, tantas vezes.